sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Celeste.


Num voo clandestino, com os pés presos ao chão da minha varanda, meu espírito desconhece essas leis da física. Meu corpo é pequeno. Usurfrindo da força de um segredo das trevas e da luz, da noite e do dia, numa linha de segundos que une tais forças opostas, eu me elevo no ar, e tento decifrar os vocábulos do céu. Mas eu desaprendi a língua do céu. Leve, permaneço a flutuar dentre as palavras chovidas apenas a mim, em anagramas e hieróglifos de outra era e outro espaço. Minh’alma como um livro a ser escrito, não apagou com o devido sucesso passagens de um outro tempo anterior à minha carne atual, deixando rastro do grafite apagado. E lá estava escrito que eu voei, suave como um acorde de violino, eu brincava com o céu e ele brincava comigo. Enquanto hoje, meus olhos cansados de uma curta vida continuam empurrando um entulho que se aglomera conforme os passos, que se materializa a cada expiração e que me faz penar no gosto azedo de algo que, em teoria, era para ser agridoce. Para deixar em pratos limpos, há alguns passos atrás, perdidos no espaço-tempo, eu estava triste. A chuva costuma cair espessa, à toneladas, em minhas costas desde que era criança. Eu suporto o peso do mundo inteiro, sem ajuda alguma. Então, o céu me alivia ao amanhecer; no contorno das núvens, eu me embebedo da alvorada. Não falo mais a língua do céu por que agora eu sei mergulhar. Agora que já não tenho mais corpo para ser celeste, só resta aos meus olhos ensopados a prerrogativa de saber como é estar envolto da glória absoluta antes de deitar-me, para então, pedir por um sono tranquilo.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Rasgando a pele das faces pela vergonha que me afeta, eu admito: Preciso da tua malandragem.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Por mais.

Ao dia, meu andar imponente, minha cabeça erguida e o olhar embebecido com doses extras de prepotência me mantém seguro por longas horas a fio, sem que eu saia de um modo automático e pare de fingir que sou extremamente forte. Entretanto, à noite, o senhor Medo me ajuda a tirar a armadura; enquanto assisto à minha pele perecer como areia, lá fora troveja, forte, e o frio pede passagem. Sou educado e abro a janela. E continuo a jornada pelos quatro infinitos metros quadrados de um quarto molhado por minha transpiração excessiva e diária; ainda o sinto seco e infértil, padecido na maldição de me velar desmoronar um pouco a cada dia, e sob seus olhos mortos e atentos, me atenho à uma posição fetal, numa vaga tentativa de me sentir menos triste, menos sozinho.
Não me atreveria a pedir um abraço...
                                                           ... por mais que precisasse.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Cavaleiro.


       Meus pés, incrivelmente, não reclamaram ao atingir o chão frio pela manhã, que estava cinzenta, assim com eu. Desenhei com o dedo os contornos do meu rosto no espelho; talvez fosse um mapa, ou até, possivelmente, já tivesse encontrado o que tanto temi achar. Mais um sonho que tive, e mais uma vez, vieste num cinismo sutil invadir a mais privada das propriedades. O sagrado do meu sono foi roubado, e tua presença profana ousou me perturbar, e a audácia de me lembrar o que eu tinha jogado aos ventos do norte, na esperança de nunca ter que encarar novamente. Tu vieste esfregar à minha cara. Vieste zombar de mim. Zombar de minha falsa-prepotência. Ela, sim, caiu por terra com a tua estadia inconveniente. Viste a tua superioridade fria e egocêntrica, comparada a minha fragilidade desarmada.
       Pelas tuas risadas, eu te expulsei. De novo. Há uma faixa de ‘Proibida A Tua Entrada’ na porta, em tom de pixe vermelho, letras grandes. A chave, sabe lá Deus onde caiu. Porém, antes de deitar esta noite, perguntarei ao espelho, exijindo respostas; quero uma expressão matemática, num papelzinho qualquer – pode ser amassado –, para domar o que em meu peito insiste em te cultivar, torna-lo-ei corcel, colocar-lhe-ei arreios e ensinar-lhe-ei o trote.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Conto nos dedos as noites que vieste perturbar a minha quietude habitual. Já nem me prolongo mais ao pensar em ti, mas continuas insistente em vir chacoalhar meus sonhos de criança...

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Eu te chamo Covarde.



Enquanto me amaldiçoas pelo espelho que sou, eu zombo da tua cara infame de menina moça.
A hipocrisia que te recheia os olhos ao me olhar, não me esconde o medo que te causo.
Pela linha retinha de uma vida quadrada que lutas para manter, vais entocando os teus erros passados com jeito malandro.
Numa surdina matinal, varres este chão esburacado e ponhe-lhe um tapete felpudo, branco e puro.
Tua face é fachada montada, que levas para todo o lugar; que usas para adorar; que te nega o peso dos teus erros e te mantem a salvo de Alecto.
Enquanto eu celebro minha natureza com alegria, tu a vees como ameaça.
Ameaça à reta que te prestas a seguir, cega, aderindo às convenções e fugindo das fraquesas.
Por isso, pagas-me com um sorriso maldito e aguardas o meu descanço com um punhal entre os mesmos dedos que alisam os meus cabelos.
Enquanto meu sono tranquilo inflama os sentimentos verdadeiros, tu os desfazes.
Não importa, pois de uma ratasana amedrontada tu não passas. Assim como a bruxa velha que te guia.
De mim, não terás nada além da pena e a palavra "Covarde" aos lábios.
Eu te chamo Covarde.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Há certas noites que gritos de saudade ficam presos entre o controle e a loucura. Se eu me calei, foi a coação do medo de ser tido como louco. Mas, levando em consideração à insanidade de continuar os passos arranhando o chão que piso, suplicando aos céus um toque que seja, começo a me perguntar o que é loucura, afinal...

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Eu afirmo, chamo-me Ganímedes.


Juntei os desenhos infantes e os joguei numa pasta qualquer, sem muito cuidado.
À minha infância, fiz planos,
Ao resto, os refiz.
Eu sonhei, sim, com uma força acima do normal,
Desejei também os resultados,
Eles não vieram, sabe?
A caminhada acabara por me revelar tantas outras,
Descobri que minhas pernas não são tão resistentes
E que a subida é árdua demais,
E além do que, descobri que não sou divindade,
E sim, mais um de carne e osso a compor a multidão.
Faz diferença?
Talvez...

Deparei-me com os materiais do pôr-do-sol,
E com borboletas, já secas, em decorações sem bom-gosto,
"O amor não é absoluto, temos que o fazer crescer por entre as rachaduras"
Expremi de algum lugar, quiçá agora mesmo.

Certa vez ouvi o "amargo" me nomear,
Não os culpo, a vida clama pelo verde,
Mas para quem atravessou um mar de pedras a nado nu,
E deixou para trás aquela pasta de desenhos no meio do nada,
O amargo não seja tão ruim, afinal ainda há um sabor ao chegar às rochas,
Sabor este que me baba a pele nua, ao redescobrir minha própria nudez.
Dentre os meus traços exacerbadamente humanizados, há um bicho.
Eu afirmo, chamo-me Ganímedes,
E chegando onde hoje estou, aguardo de bom grado as garras da águia.

domingo, 6 de novembro de 2011

O Sem-alma.

Lá vai ele, lá vai
Perambula pela Terra querendo comida
Querendo água, querendo paz
Guerreando contra a ditadura do tédio
O algoz insuportável
Não grita, não chora
Não sorri, não enxerga
Contra o tórax bate uma pedra
Levando seu sangue
Roubando seus meios
Não há laços com esses ou aqueles
Nem mesmo a mulher que lhe deu os seios
O olhar falecido de nascença não fala
Munido de perfumes e falácias
E os sorrisos graciosos guardados na mala
De porta em porta
De tempos em tempos
Apontam-lhe os dedos, começam a julgar
Se vê como destino, refazer n’outro lugar
Caminhando pelas pedras, adiante, uma clareira
Logo, um penhasco, acima uma ameixeira
A vida ficou sem motivo, de repente
O tédio lhe estrangulou o ser como uma serpente
O céu responde ao sem-alma
Nunca haverá silêncio, nem paz, nem calma
A certeza lhe vem: Sua vida é uma droga
Abre os braços e...

sábado, 5 de novembro de 2011

A Lenda de Jaebé (João-de-barro)


Contam os índios que foi assim que nasceu o pássaro João-de-barro:
Segundo a lenda, há muito tempo, numa tribo no sul do Brasil, um jovem apaixonou-se por uma moça de grande beleza. Jaebé, o moço, foi pedi-la em casamento. O pai dela então perguntou:
- Que provas podes dar de sua força para pretender a mão da moça mais formosa da tribo?
- As provas do meu amor! - respondeu o jovem Jaebé.
O velho gostou da resposta, mas achou o jovem atrevido, então disse:
- O último pretendente de minha fila falou que ficaria cinco dias em jejum e morreu no quarto dia.
- Pois eu digo que ficarei nove dias em jejum e não morrerei.
Toda a tribo se admirou com a coragem do jovem apaixonado. O velho ordenou que se desse início à prova. Então, enrolaram o rapaz num pesado couro de anta e ficaram dia e noite vigiando para que ele não saísse nem fosse alimentado. A jovem apaixonada chorava e implorava à deusa Lua que o mantivesse vivo. O tempo foi passando e certa manhã, a filha pediu ao pai:
- Já se passaram cinco dias. Não o deixe morrer.
E o velho respondeu:
- Ele é arrogante, falou nas forças do amor. Vamos ver o que acontece.
Esperou então até a última hora do novo dia, então ordenou:
- Vamos ver o que resta do arrogante Jaebé.
Quando abriram o couro da anta, Jaebé saltou ligeiro. Seus olhos brilharam, seu sorriso tinha uma luz mágica. Sua pele estava limpa e tinha cheiro de perfume de amêndoas. Todos se admiraram e ficaram mais admirados ainda quando o jovem, ao ver sua amada, se pôs a cantar como um pássaro enquanto seu corpo, aos poucos, se transformava num corpo de pássaro!
E foi naquele exato  momento que os raios do luar tocaram a jovem apaixonada, que também se viu transformada em um pássaro. E, então, ela saiu voando atrás de Jaebé, que a chamava para a floresta onde desapareceram para sempre.
Podemos constatar a prova do grande amor que uniu esses dois jovens no cuidado com que o joão-de-barro constrói sua casa e protege os filhotes. Os homens admiram o pássaro joão-de-barro porque se lembram da força de Jaebé, uma força que nasceu do amor e foi maior que a morte.

domingo, 16 de outubro de 2011

A Menina do Cabelo Rosa.

Naquela tarde de inverno, o frio tinha dado uma trégua. Aproveitei para descer à calçada e fumar um pouco. Encostado num poste de luz, permaneci, quieto, me deliciando com meu cigarro. Eis que, de alguma esquina, ela surge – eu sabia que ela passava por ali naquele exato horário –, seus fios de cabelo tingidos de rosa dançavam uma valsa suave, regidos pela senhora brisa, que ditava, delicadamente, os passos da dança. Seu andar diferenciado e excêntrico me prendeu a atenção por segundos antes de tentar interpretar a roupa que ela carregava no corpo. Desde o tempo que a notei, em cima do meu parapeito diário, percebi uma grande criatividade. Lembro-me até do primeiro sorriso que vi brotar do seu rosto imponente, mais parecia uma moleca! Seu jeito brincalhão e tantas outras coisas. Mas ali estava eu, e lá vinha ela. Eu a observava vir em minha direção e tentei disfarçar. Abaixei a cabeça, fitando a fumaça do meu marlboro – que segurava com o indicador e o polegar – se dispersando no ar e ouvia atentamente o “toc toc” dos seus sapatos. Poucos segundos e levantei a cabeça, vendo-a com um sorriso estendido, há poucos metros de onde estava, continuando em minha direção. Sabe, por um momento eu pensei que aquele sorriso era meu, cheguei até a arquitetar outro de retribuição, mas ao pousar o olhar para trás, vejo que ela estava acompanhada. Sua turma a aguardava logo atrás de mim. Apaguei o cigarro e voltei ao meu parapeito, o frio voltara.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Maçaneta.


Diante de uma porta colossal cheia de espinhos, me vem o medo falar sobre conseqüências, e ao olhar para trás, apenas a visão de estradas torpes que fiz questão de atravessar, mas que talvez tenham me levado a algum lugar. Há tantos caminhos, assim julgo, depois desse grande portal que me faz tremer. Não tenho mais espaço para o cigarro, ou asas e nem mesmo para vôos clandestinos. ‘Enraizar e amadurecer’, ‘enraizar e amadurecer’, ‘enraizar e amadurecer’... Como caminhar? ‘Enraizar e amadurecer’, repito outra vez perdida. E vem o medo, novamente, soprar aos meus ouvidos o que eu tento afastar da minha mente nas noites solitárias. Carrego planos amadores numa grande pasta embaixo do braço, aguardando mais e mais folhas rabiscadas de planos e metas traçadas ao longo do caminho que me levar; nunca sonhos, jamais! O destino me aguarda, sentado na sua velha cadeira de balanço, cujo ranger irritante, consigo ouvir antes mesmo de cruzar esta maldita porta.
Ao puxar a monstruosa maçaneta e dar o primeiro passo, não haverá mais como retroceder e assim, o amor ficará cru. Não sonharei; cada vez mais adentro num mundo de solo escaldante e água fresca escassa. Não sonharei; isso é regalia para esquizofrênicos. Eu juro que não sonharei mais após passar por esta porta.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

"Ela não existe!"

Eu era um pinguinho de gente. Tinha entre dois e três anos, algo assim. Minha babá, Paula, acabara de me levar ao trabalho de mamãe, e já estávamos voltando à rodoviária. Passávamos por um cruzamento – até hoje ele existe – cheio de curvas, aonde os carros iam e vinham, e confundiam qualquer um. Lembro-me bem que ela segurava a minha mãozinha pequena e andava, praticamente me arrastando. Ela era impaciente. Tinha medo de perguntar-lhe, mas a menina me fazia falta. Eu lembrava-me dela, e a admirava também. Será que ainda lembrava seu nome? Talvez, não recordo-me bem. Mas eu sorria ao lembrar de seus cabelos, do sorriso e da sua postura também.
Eu tinha medo da minha babá, contudo, eu a perguntei sobre a menina, aquela que me fazia tanta falta, de quem eu tinha poucas imagens e grandes sentimentos.
“Ela não existe! Agora cala a boca e anda.” Resmungou.

sábado, 24 de setembro de 2011

Bem-vindos à Californication!


Não respirei o ar frio de toda rotina hoje.
Saí de casa com a mochila rasgada que fedia a mofo e pus os passos na calçada gasta, para assim, como fiz religiosamente todos os dias da minha vida, cortar o bairro até a fábrica em que trabalho.
Não estudei até o ensino médio.
Não tenho macarronada para o almoço.
Minha barba se projeta no meu rosto e há dez dias que tenho preguiça de tirar.
Cigarro? Sim, por favor!
Sabe aquela velha que observava pela janela quebrada da cobertura daquele prédio do meio, bem ali? Ela sempre faz isso.
Assisti a TV ontem até as nove da noite, porque depois a antena de metal vagabundo, feita por mim mesmo, não funcionou mais.
O galão de água acabou e esqueci de lavar a minha roupa extra. E de varrer meu quarto. Aliás, nunca varreram nem essas ruas. Não há sinalização também.
Só tive um amigo. Cuja morada era um prédio torto que ameaçava desabar, e cuja porta de entrada era menor do que minha canela.
Não há sol. Algumas nuvens talvez.
Esqueci de me olhar no espelho antes de sair de casa. Devo estar com olheiras e mais magro que o habitual.
Certa vez, vi pela janela úmida de um apartamento térreo que alguém concertava um carro muito antigo acabado. Um dos raros carros que vi na vida. Há pistas por aqui, utilizadas por pedestres.
O vento sempre sopra quente. E os riscos que dão vida ao rio são mortos pelas garrafas plásticas e dejetos.
Respiro o ar de poeira e fumaça. A fábrica não para. Trabalho 12 horas por dia. Recebo pouco. E o aluguel do quarto-e-sala é caro.
A vida de todos anda por um fio. As mães fazem o que podem. Não se sangra, apenas morre.
Não há tanto perigo na borracha como se pensa, mas os mistérios de uns poucos rabiscos são grandes demais. E eu vivo com medo. Todos e eu, pra ser sincero.
Nunca vou esquecer de quando saí para a única viagem que fiz. Na saída da cidade havia um letreiro, escrito: Bem-vindos à Californication. Ainda pude contemplar um pôr-do-sol num cartaz futurista.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Em Minhas Asas.


Quando o sol se ergue lá no horizonte no passo-a-passo, eu abro as asas.
As nuvens se pincelam do dourado da alvorada, enquanto eu recomeço o meu trabalho de dias a fio.
Ergo-me num vôo raso, elevo-me para cima e norteio-me para os tons de roxo do céu que acorda.
O ninho ainda não está pronto. Jaebé não veio. Talvez não venha mais.
Deixou-me as lembranças e o peso no coração, dificultando-me a planagem. Descer, pegar uma bolinha de barro, para depois subir tornou-se mais árduo agora.
De volta ao ninho - parcialmente destruído pela chuva da noite -, semeio o amor das minhas recordações no barro moldado por um bico frágil e solitário. Não há espaço para lágrimas, o trabalho me chama.
O orvalho invade-me as narinas. O cheiro me é familiar das outras manhãs em que meu coração estava brando e sorridente.
Elevo-me novamente aos céus, na esperança de terminar sozinho o trabalho de dois. Carrego nas asas a dor diária da saudade que Jaebé me deixou, ao olhar o dia acordar, e não ter seu canto aos meus ouvidos. O ninho volta a pedir-me o barro, e eu mergulho, novamente, em pleno ar.

Sim, senhor, senhor Destino

Ganho tapas nas faces pela prepotência que me faz parte, além de certa arrogância. Ele faz com que abaixe a crista e depois impõe: "Chama-me de senhor!"
- Sim, senhor, senhor Destino. - É o que eu respondo.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Joelhos ao Chão.




Hoje eu me distanciei do caminho de volta para casa. Chovia bastante e a estrada era de barro. Não deu outra, atolei os pés. Na rua estreita, de casas simples, havia pessoas queimando o lixo, havia pessoas ajeitando os telhados frágeis demais para aguentarem o peso do tempo e havia pessoas varrendo o chão da calçada em pleno temporal. Vi gente com a mão cansada estendida para o alto, pedindo comida. Vi gente doida que pensava que tinha mais de três metros.
As vielas eram às dezenas. Escuras, claras, de gente simples, que sorria para a vida que brotava das mãos sofridas e olhos cansados. Perguntei-me sobre um mapa, estava perdido. Dentre um labirinto, não pude dizer com certeza onde estava. Meus pés choraram sangue e a loucura sorriu pra mim, nuns dias escuros. Banhei-me na escuridão de uma noite sem lua e sem estrelas. Caí em agonia, num chão de espinhos, sem ao menos saber se era norte ou sul. “Ele nunca te deixará sozinho, planta os teus joelhos ao chão e implora”, uma senhorinha disse-me ao passar por uma rua e lembrei.
Rasguei o peito e me pus ao chão. Não havia mais casas, ou pessoas, ou ruas alagadas. Apenas vento forte e uma árvore que queimava em chamas celestiais, e era ela a força vital do meu coração no meio do meu jardim. Havia flores, sim, mas também havia muitas ervas daninhas. Senti que alguém enxugava minhas lágrimas e me estendia a mão. As perguntas se foram e me permiti sentir, como ser levado pela corrente de um rio tranqüilo. Eu conheci a Deus depois de muito andar. Eu conheci a Deus depois de tantas feridas sem respostas. Conheci a Deus enquanto as costas doíam. Eu conheci a Deus antes e depois de um suspiro doloroso. A luz finalmente sorriu para mim.

domingo, 14 de agosto de 2011

Mãozinhas ao Sol.

Sorriso de criança
A vassoura sambava no terreiro
Pés descalços acima e abaixo,
Saia ao vento e mãozinhas ao sol
Corria, sorria, corria, sorria
Casa de barro, lenha no fogão
O fogo esquentava a canja e o pirão
“Vem menina, vem comer”
“Agora não, mainha, agora não!”
Tranquila
Sem escola, sem dinheiro
Tem paz e tem amor.

Oh, meu Deuzinho, tem misericórdia só de mim
Pois eu sei demais.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Απόλλων και Υάκινθος

Apollo e Hyacinth

Jacinto era um desses jovens eleitos dos deuses. Diz a lenda que ele nasceu em Esparta, era filho de Clio, uma das musas, e de um mortal a quem ela se uniu. Da mãe, ou do pai, ou dos próprios deuses recebera o dom da beleza. Ocorreu, certo dia, que Apolo, enquanto conduzia sua carruagem na abóbada celeste cujo domínio era todo seu, viu o jovem. Jacinto, além de admiravelmente belo e pleno de encanto, era também musculoso e forte como um pinheiro esbelto do Monte Olimpo.
Quando Apolo falou com Jacinto achou que seu rosto não mentia o que seu coração trazia. O deus percebeu com alegria que tinha encontrado, enfim, o companheiro perfeito, o audaz e sempre jovial companheiro que, com ânimo sempre disposto, estava pronto a reunir-se a ele. Se Apolo desejasse caçar, com um grito festivo Jacinto chamava os cães. O grande deus queria pescar, Jacinto estava pronto para preparar as redes e lançar-se entusiasmado na nobre ocupação de pesca dos peixes. Se Apolo desejasse subir aos cumes ermos das montanhas, onde nem mesmo o bater de asas das águias quebrava a constante quietude, Jacinto estava pronto para o acompanhar. E quando no topo da montanha Apolo fitava em silêncio o espaço infinito, Jacinto partilhava com o amigo a mesma contemplação. Se Apolo punha-se a tocar a lira, o jovem deitava-se a seus pés e ouvia silencioso a música perfeita que o deus criava.
Todavia, não era apenas Apolo que desejava a amizade de Jacinto. Zéfiro, o Vento Oeste, que o conhecera antes que o deus atravessasse seu caminho, tinha ansiosamente desejado tê-lo como amigo. Mas quem podia se colocar contra Apolo? Contrariado, Zéfiro notou aquela amizade sempre perfeita e em seu coração despeitado o ódio cresceu e lhe sussurrava ânsias de vingança.
Jacinto se distinguia em todos os esportes e para Apolo, que amava todas as coisas belas, era uma completa alegria vê-lo se preparar para lançar o disco: os músculos tensos, o porte harmônico faziam-no assemelhar-se a Hermes, pronto para repelir o chão embaraçoso sob os pés. Ele podia lançar o disco mais longe até mesmo que o deus seu amigo, e o riso jubiloso que exprimia quando bem-sucedido fazia o deus sentir que homem algum nem os deuses podiam possuir tamanha doçura.
Veio o dia, predeterminado pelo Destino, em que os dois amigos jogavam juntos uma partida. Jacinto fez um primoroso arremesso. Apolo tomou posição e lançou o disco alto e longe. O jovem correu adiante ansioso para medir a distância, gritando excitado com o lançamento, verdadeiramente o lance primoroso de um deus. Foi então que Zéfiro obteve sua oportunidade. De sobre as árvores veio prontamente o murmúrio do Vento Oeste e golpeou o disco de Apolo que voou com ímpeto contra a fronte de Jacinto. Partiu os cachos de cabelos que lhe caíam sobre o rosto, atravessou a pele, as carnes e os ossos e o derrubou ao solo. Apolo correu, levantou-o nos braços, mas a cabeça do jovem tombou sem vida sobre os ombros do deus.
“Se eu pudesse morrer por ti, Jacinto!”, clamou Apolo. “Despojei-te de tua juventude. O sofrimento é teu, o crime é meu. Cantarei para ti sempre, ó amigo perfeito! Tu viverás eternamente como uma flor que aos corações dos homens falará da primavera e da juventude eterna”. Enquanto falava a seus pés brotava, das gotas de sangue, um cacho de flores azuis como o céu na primavera, embora pendessem as pétalas como se em estado de dor.
Ainda hoje, quando o inverno chega ao fim e o canto dos pássaros anuncia a primavera, encontramos nos bosques os sinais do juramento do deus-sol. Os lariços, como dríades esbeltas, ostentam uma vestimenta emplumada de folhagens suaves e sob as árvores as prímulas olham para cima, como estrelas caídas. Indo pelas trilhas pisamos sobre as folhas finas e perfumadas dos pinheiros e das faias do ano passado que ainda não perderam o seu âmbar radiante; na curva, o deus-sol penetra subitamente entre os galhos das árvores, e ante nós estende-se um canteiro de um raro azul, que parece viver e mover-se entre a luz e as sombras.
À medida que contemplamos, vemos o sol tocar as pequenas flores em forma de campânula do jacinto silvestre, o Vento Oeste passar sobre elas e movê-las docemente. Assim, Jacinto continua vivendo; assim, Apolo e Zéfiro ainda amam e choram o amigo.



Contemplam os jogadores dos dois lados
Lembrando, ao mesmo tempo,
A sorte de Jacinto, quando o sopro,
De Zéfiro o matou;
De Zéfiro que, agora, penitente,
Quando Febo se eleva
No céu, as pétalas da florzinha beija.
Endimião

terça-feira, 26 de julho de 2011

Em Busca do Eu-Sátiro.



E cresci dentre as ninfas, entregue-lhes fui ao nascer. Um bando de Dríades deu-me a sabedoria como se eu fosse uma delas. Ensinaram-me a caçar com sutileza dos passos leves e transfiguração, a fabricação de perfumes de flores rosa-claras e amarelas, além dos afazeres domésticos e a magia da cura. Presentearam-me com seus mais secretos costumes e fizeram ambíguo o meu crescimento a cada primavera. À puberdade, meu traços eram ninfíticos – minha pele cresceu clara como um lírio branco, exalava um cheiro leve e doce como mel e meus cabelos eram macios como a água de um lago calmo. Mas permitiram-me a imagem de menino que me era por direito, portanto, fizeram-me híbrido – dei-me conta disso ao deparar-me com meu reflexo – Toquei-me no queixo, no peitoral, na virilha e no pênis, além das coxas e bunda. Alguma rigidez estava escondida em algum lugar ali, arrisco dizer que deveria ter até pelos também. Indicaram-me o caminho dos bosques, ao me verem entregue ao tormento das dúvidas. Meu andar era ninfítico, demorei a achar a trilha correta.
Deparei-me com o vale dos sátiros. Por certas vezes, presenciei o cortejo dessas criaturas rudes, desprovidas de sensibilidade, às ninfas do meu bando. Mas, naquele vale – cujo odor forte que permeava aqueles ares era desconhecido para mim – assustei-me com os modos daquelas bestas. Não davam-me qualquer fio de atenção, e, tolo como sou, foi preciso várias rosnadas para que entendesse que não podia ser ninfítico naquele lugar, refugiei-me num salgueiro alto, por medo. E ali em cima passei a viver pelos dias subseqüentes. Um ninho de hipogrifo formou-se em meus pensamentos em tais dias e noites de solidão, deparava-me com um conflito de gênero. Olhei-me mais uma vez e percebi o quanto era parecido com aqueles selvagens: Tinha as mesmas patas, chifres e um corpo levemente robusto. Mas, poucos pelos, pele alva, cabelos macios e voz confortante. Algo estava errado comigo.
Numa noite, sonhei com uma viagem a Delfos e pelo amanhecer, usei de transfiguração para passar despercebido por entre os sátiros e iniciar minha jornada. Encontrei loureiros e cheguei ao oráculo. Banhava-me na fonte Castália quando certa Pitonisa de cabelos vermelhos como fogo aproximou-se para entrega de uma profecia. Prosou a história de Édipo e disse-me com voz embargada: “O que queres é algo adquirido, o tempo te será um amigo chato e de exarcebada paciência. Voltas pelo mesmo caminho e pega pelas estradas os teus traços satíricos.”

sábado, 23 de julho de 2011

Segredos de Garotos.


Eu nunca tinha revelado a Marcelo o desejo que eu sentia por ele. Talvez porque nem eu mesmo estava disposto a aceitar, o que mudou com o tempo. Nos conhecemos e logo pegamos uma amizade sincera e para um freqüentar a casa do outro, foi um pulo. Passávamos tardes a fio nos divertindo como dois adolescentes em plena erupção dos hormônios, trancados no quarto, folheando revistas de mulher pelada, aprendendo na prática o gosto do prazer. Mas cada um na sua, lógico, como dois machos tem que ser. Quase sempre, depois disso, íamos jogar bola. Entretanto, não era só a imagem daquelas mulheres que me faziam chegar ao êxtase, mas também o corpo de Marcelo, o cheiro de Marcelo, todo o carinho que eu sentia pelo meu camarada. Comecei a aceitar aquilo e me deparava pensando nas possibilidades noites adentro.
Depois de um jogo, num fim de tarde, fomos para minha casa, ele dormiria lá. Foi um ato de loucura, eu sei, mas enquanto ele tomava banho, cheirei as roupas suadas que ele tinha usado para o jogo da tarde. Um arrepio atravessou o meu corpo e milhares de sensações a cada segundo em que aspirei o cheiro do meu amigo. Algumas horas depois, tudo certo, eu estava deitado na minha cama e ele, no colchão no chão, puro clichê. Desci a minha mão e pude tocar sua barriga sarada pela primeira vez. Medo, tesão, vergonha, impulso, tudo vinha a todo momento e com o silencio consentido dele, deslizei a mão. Olhava fixamente para o teto, passeava por sua virilha, até alcançar o tão sonhado objeto dos meus devaneios. Mãos, bocas, toques, abraços, peso, dominação e a briga pelo prazer. Gozo. Caímos exaustos em sono profundo.

- Bem cara, vou indo. Talvez no final de semana eu apareça por aqui de novo.

- Beleza, velho.

terça-feira, 19 de julho de 2011

"Oi, eu escolhi a homofobia."



Numa tarde tulmutuada, no meio de uma praça, no centro de uma cidade qualquer...
 – Oi, posso sentar aqui? Estava no meio daquele tumulto e estou com falta de ar...
[...] Obrigado!
[...] É interessante essa coisa de discriminação, né? Muita gente não sabe o que há por trás de todo esse show. Eu nunca disse isso a ninguém pra te falar a verdade. Talvez pelo código secreto de ética gay incrivelmente rigoroso que paira por todos dentro dessa categoria. Mas algo me força a admitir que sim, eu escolhi ser gay. Lembro que quando eu era criança eu via algumas “bichas” na rua e eu, sinceramente, achava muito bonito. Não sei se eram as cores, o jeito espontâneo ou o descaramento de alguns deles, mas eu os achava interessantes. Talvez eu até seja masoquista, às vezes penso. Sempre me encantou a forma que vivem os homossexuais. Algo me atraía naquela vida de rejeição e sofrimento. Ver as noticias praticamente diárias sobre as agressões e mortes de crimes de ódio e homofobia enchia meus olhos de esperança para uma realidade que, mais tarde, seria a minha. E assim seguiram-se uns anos. Fui me condicionando a dar certas “pintas” e aquilo foi mudando o meu psicológico de alguma forma. Ainda tem o fato importante de alguém ter vindo até mim e me mostrado duas opções: Heterossexual e homossexual. E eu escolhi a segunda, lógico (risos). A partir daí as coisas foram mais fáceis para a minha nova condição, comecei a ficar com meninos.
Olha, no começo eu não gostava muito, sabe? É meio nojento aquela barba roçando, aquele corpo rijo, cheio de músculos, além do principal, é claro. Foi doloroso, muito doloroso. Pensei até em desistir naquele momento, mas lembrei do meu sonho da vida gay, um ideal de vida que tenho o maior orgulho de ter escolhido. Do mesmo jeito de antes, me adaptei à minha nova condição e ela acabou por ser menos desagradável com o tempo. A dor se foi, o que era o incômodo maior, e deu lugar a mais um trunfo na jornada que eu escolhi. Admito que tinha certas ocasiões que meus olhos me traíam e eu me pegava olhando para a bunda das meninas, mas eu me segurava. “Eu sou gay e muito gay!”, era o que eu dizia. Hoje, adquiri auto-controle e meus olhos não me traem mais. Mas, desmistificando uma outra mentira alegada pelos gays, posso afirmar que é impossível um homem sentir atração por outro. Nós sempre pensamos em mulheres “na hora do vamo ver?”.
Ah, ia esquecendo-me de falar sobre a religião. As bichinhas sempre alegam que ser gay não é uma escolha e blábláblá – o que acabei de desmentir. Há também a questão religiosa, né? Muitos gays saem em confronto com os guias espirituais de seitas que não os aceitam, mostrando partes absurdas do livro que eles seguem, como Êxodo 21:7, que fala expressamente em vender filhos como escravos, ou até a própria idéia do apedrejamento para adúlteros, filhos desobedientes e muitas outras coisas. Além de aprovar o sacrifício humano também, como em 1 Reis 13: 1-2. Mas sinceramente, isso não vem ao caso. Lei é lei e assim deve ser cumprida. Ser gay não é motivo suficiente para desviar algo que há milênios vem sendo cumprido de forma ética, justa e eficiente. “Ah, mas é reflexo de um povo antigo, de costumes primitivos...”, ora, faça-me o favor! Já não basta às mulheres se rebelarem e estarem a cada dia mais distanciadas do papel destinado a elas? Como deixa expresso Efésios 5-22 e 24? Não, é tudo baboseira dessa militância que alega só querer o direito de ser feliz. Ora, todos os gays sabem da realidade, porque optar por ela? E aliás, se é isso que eles vão ter... Porque, então, escolheram?
A violência impera para pessoas como eu. Bichinha, viadinho, mariquinha, florzinha, nossa, são tantos apelidos que eu tenho que até perco a conta, sabia? (risos). Isso é gostoso. Pode até parecer estranho para algumas pessoas ouvir isso, mas sim, é muito bom sentir essa discriminação na pele. Já fui agredido também, diversas vezes. Sou masoquista, afirmo e assino embaixo. E tem a humilhação que é um deguste à parte. Gay gosta de sofrer, nós nascemos para isso e abraçamos a cada dia que saímos na rua. O medo é uma adrenalina que nos acompanha quando somos pintosos, ou estamos com algum namoradinho, ou quando, por ventura, alguns pitboys (muitos deles escolheram secretamente a mesma vida que os gays, mas deixam tudo às escondidas) descobrem que já saímos com homens ou mulheres (no caso das lésbicas). Acho até que apimenta a relação toda essa montanha-russa de medo e adrenalina! (risos).
Hoje em dia eu moro só, mais um reflexo da minha escolha. É interessante sentir na pele como as pessoas, depois que sabem que você optou por ser gay, te resumem à palavra GAY. Simplesmente apagam o “bom filho”, o “bom amigo”, o “estudioso”, o “Bom caráter”, o “Honesto”, o “brincalhão”, o “divertido”, o “companheiro para qualquer momento da vida”. Todos esses adjetivos passam a não existir mais e quando te olham, vêem apenas a palavra GAY. Foi o que aconteceu com a minha família, eles me viraram as costas. Sabe, eu lembro que eu sempre fui muito apegado à minha mãe. Lembro que, quando tinha 4 ou 5 anos, ela me banhava com água morna nas noites de inverno. Lembro também quando o meu pai chegava do trabalho, eu, um tamanhinho de gente, atravessava a sala correndo e ia pros braços dele. Os jantares de Natal, festas de aniversário... Nunca mais soube o que é isso depois da minha escolha. Minha mãe não me dá mais colo, na verdade, nem me liga mais. Talvez tenha até esquecido de mim. A família, eu tenho certeza, eles não lembram de um gay, que só servia para manchar a imagem de boa família que era sustentada há gerações.
Ta vendo? Eu consegui tudo o que eu almejava ao escolher essa vida. Fui agredido, humilhado, esquecido... E estou feliz, eu optei por tudo isso, eu escolhi e me dei bem, obtive o mais sublime sucesso na minha trajetória. Consegue ver o sorriso na minha face?... Bem, temo ter que ir agora. Veja só, só te falei tudo isso porque eu tinha que revelar a alguém o que realmente se passa nesse meio gls. Não é questão de nascer assim, todos escolhem, sempre escolhem, entretanto o código de ética não nos permite revelar isso, mas hoje eu presenteio um desconhecido com a verdade porque hoje foi me dada a mais alta medalha por escolher ser gay. Tudo o que eu passei valeu apena e consegui chegar onde alguns não conseguem. Vê esse furo no meu peito? Eu fui baleado (risos). Me chamaram de bichinha e viadinho, sacaram uma arma e atiraram. Eu não podia estar mais realizado.

 




sexta-feira, 15 de julho de 2011

A Cidade de Rabiscos.


            Num lugar muito, muito distante, no mundo dos desenhos, havia uma rua escura. Rodeada por árvores rabiscadas com carbono. Ao final – nunca explorado – da mesma rua, dava-se conta do céu nublado que nunca chovia, do frio e do ar seco. O governo naquele lugar era falho, o dinheiro era papel rabiscado que não valia muito. Todos eram pobres. Muitos com desgastes emocionais e psicológicos tão grandes que tornavam-se mesquinhos, egoístas e infelizes. Na calmaria da noite, apenas os passos de Pegeto e seu fiel amigo, Pedrinho, ecoava pelo lugar. Pegeto era um velho rascunho feito há algum tempo, talhava seus objetos em madeira 2d, ele era carpinteiro. Pedrinho ajudava-o como podia – Pedrinho era um boneco de porcelana que chegara desgastado à casa de Pegeto numa noite tempestuosa. Ele estava fraco e sem algumas partes do corpo – pois nutria um carinho por seu guardião.
        Eles voltavam da feira com mais rabiscos velhos de madeira, feitos com lápis 6b, desta vez para por na lareira, além de algumas tintas a óleo para os traços de Pedrinho. No número trinta e seis – uma casa pequena, onde não tinha variedade de cores, apenas tons de branco, preto e cinza, e, quem sabe, verde – os dois entraram e trancaram a porta para se proteger do frio. Poucas horas depois da janta, a lareira já estava acesa e Pegeto trabalhava na pintura do pequeno boneco. Começou com os olhos, depois foi a vez das roupas e os sapatos, além da cor, cuidadosamente escolhida para a pele. Pedrinho estava todo arrumadinho novamente, nem parecia que era o mesmo de meses atrás.
        Pegeto sabia que Pedrinho não pertencia àquele lugar. Ele era um boneco lindo, de uma fina porcelana, que logo estaria na estrada a procura do seu lugar por direito. Ali era o país dos rabiscos, e Pedrinho era feito de material nobre. Pegeto preparava-se todas as noites para a iminente partida de Pedrinho, via-o dormir na cama improvisada e depois saía pelas ruas escuras a procura de um bar. Enchia a cara para livrar-se do tormento da solidão que chegava perto, como um amigo chato que a muito não o via e queria de qualquer jeito a sua companhia. Certa vez, numa dessas voltas, Pegeto encontrou a casa vazia e uma carta em cima da cama de Pedrinho, despedindo-se. Contrariando suas expectativas, ele não sentiu-se tão triste como pensara, mas teve saudades do boneco. Foi até a porta da frente, abriu-a e disse: “Boa sorte, meu pequeno!”, na esperança de que o vento levasse-as para Pedrinho. Fechou a porta e entregou-se a rotina, sempre com o ferrolho destrancado, caso Pedrinho aparecesse para dar um “Oi”.

Dedicado a Daniel.

domingo, 10 de julho de 2011

Palavras.


A única coisa de que me lembro é que nós estávamos na sala, sentados no tapete que mais parecia algodão ao se pisar. Ele estava sem camisa e a luz de fim de tarde que adentrava pela fina cortina que cobria parcialmente a janela da sala, o deixava muito sexy e ao mesmo tempo o transformava numa criatura sem malícia, era algo surreal. Se, por uns flashes de poucos segundos me dava tesão, aquela imagem despertava em mim algo muito mais além da carne.
Ele me olhava com um sorriso tão doce que os meus instintos responderam àquele estímulo, esboçando outro sorriso que, meus próprios instintos, o tornavam inegavelmente sincero. O toque de suas mãos me ensinava tal linguagem que me instigara a curiosidade. As primeiras vogais, letras e até mesmo uma palavra: Sempre – me disse o significado depois de eu ter acabado de repetir os gestos. Um momento tocante ali se deu assim que acabei de terminar a tal palavra, ele se aproximou mais um pouco e ficou a explorar minha mão esquerda com a dele. As sensações que aquele toque inocente me transmitia, eu posso ilustrar como uma bagunça de sabores e texturas que nunca havia provado antes, e, com todos aqueles carinhos em minha mão canhota, ele me ensinava mais letras e palavras.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Deserto.

Hoje eu, incrivelmente, me peguei sem direção mais uma vez. Algum sentido além dos cinco que, normalmente, é dado a todo pobre mortal, me dizia que sempre houve alguma coisa errada. Eu não chorei e nem vou chorar, não vejo motivo. História antiga que me fazia ter certeza de alguma coisa nessa vida, mas na verdade, tinha lá suas farsas. Depois de tanto tempo, mais alguma pessoa mascarada veio me dizer, num timbre familiar, “Olá”. Eu conhecia sua máscara e não sua face. Dói dar-se conta disso, mas o caminho está cada vez mais seco e árido, imbrotável e deserto. Era mais um túmulo que eu deixava pra trás, sem crucifixo e nem identificação.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Bater: Falsa Coroa.

Eu me fiz acreditar, criança tola. Olhando-se para o espelho agora, o que vês? Mas antes de começar, dispa-se do véu opaco da vaidade da sua individualidade, olhe-se com olhos de outrem. O que vês? Vês a tua estatura baixa, teu cabelo duro e teus olhos de cachorro morto. Por tanto, tire essa coroa de plástico que enfeita essa tua cabeça grande, cuja mesma coroa, julgas ser de ouro maciço; não é, ela quebra, é plástico, dos mais vagabundos. Aconselho-te também a quebrar esse pedestal de barro que exibes, pensando ser mármore. Ah, e teu preço é baixo. Se não compras nada, é porque pedes mais do que tu podes pagar. Não viu o casaco de pele de grife? Só estava no teu corpo por ser defeituoso, caso contrário, não irias nem poder tocá-lo. Caia na real, meu bem, hoje é lei de oferta e demanda, compra e venda, até os próprios sentimentos estão expostos em vitrines; portanto, não chore a sua solidão, não grite por socorro, porque sei que você é de escolher a dedo. Cuidado na hora de apontar.
[...]
E não me venha com réplicas, meu papel é bater. Você escolhe se abraça a dor ou vira as costas.

domingo, 3 de julho de 2011

Outono da tarde (a dream).

Depois do café da tarde eu passei pela Torre Eiffel. Alguns passos mais adiante e eu jurei ter te visto por lá, dentre as poucas pessoas e aquela atmosfera descolorida e opaca que eu tanto gosto. O pôr-do-sol durou mais que o habitual e a brisa fresca da primeira tarde de outono em Paris me fez lembrar você. A saudade me apertou o peito, mesmo. Tanto que imaginei te abraçar ali; foi meio maluco isso. Olha, só quero dizer que te amo. Não se esqueça de mim, que eu estarei com você, mesmo que não me lembre de ti a maior parte do tempo. Agora tenho que ir, vou acordar.



Se cuida, meu amor.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Embriagado.


Embriagado. Cheguei em casa e caí na cama, embriagado. Talvez só um pouco, o que me permitiu todo o ritual das outras noites normais. Eram apenas fantasias que eu usava como calmantes, nunca passou disso. Eu não me toquei, nunca fiz isso. Se eu já tentei? Bem, já. Tenho um pau entre as pernas e queria saber usá-lo como tal, manobrar e extrair aquela dor chata incrivelmente prazerosa que todos os machos que passaram pela terra tanto amam. Mas eu não sinto. Muitas vezes chego a pensar que não aprendi a ser macho. Em outras, penso ser tão híbrido que me tornei um terceiro gênero; sem pênis e nem seios, ou, paradoxalmente, até os tenha. Num banheiro sujo, fedendo a mijo acumulado, é onde eu tenho a percepção da diferença. Acho até que deveria ser naquele lugar que eu deveria começar. Não sou macho. Numa sala de mulheres, também vejo convergências, o que me dá a certeza de que também não sou fêmea. Num caminho perpendicular, fui ao médico. Minha taxa de hormônios é baixa, provavelmente.

Atrás.


Eu vi, ela saiu correndo

Ele correu atrás

Eu estava atrás  atrás de uma parede distante

Ele a agarrou por trás

Ela gritou e pediu ajuda

Eu não me movi.

Colorir.



A luz do dia caía, enquanto eu a observava atento, como um bom avô. Eu a levei para dar uma volta no parquinho e Joana não perdeu tempo, coloriu as traves do balanço, o escorrega e até alguns coleguinhas que conhecera naquela tarde. Ela estava com seus sete anos, e não desgrudava da caixinha de lápis de colorir que eu a presenteei no seu segundo ano de vida. Menina danada, pintava tudo o que via morto, em tom de cinza, preto e branco. Começou pelo quarto, depois passou a colorir de tons de rosa, azul, vermelho e verde as paredes da casa. Logo após pintou a mãe, o pai, a avó, a mim e até a babá. No caminho para o jardim de infância, riscava de azul ou verde as paredes mortas daquela cidade.
Nas páginas do caderninho, havia mais pinturas e desenhos, muitos sobre seu futuro, do que as lições escolares. Chegou a pintar a professora, pois dizia que ela não conseguia ver cores na coitada. Eu não a culpo, eu também ganhei um caixinha de lápis na minha infância, mas isso já faz muito tempo e hoje não consigo enxergar as cores que minha adorada neta tanto distribui por aí.
- Joana, venha cá. – Chamei-a, interrompendo o que fazia.
- Oi, vovô. – Disse, caminhando até mim.
- Porque você vive pintando as coisas? – Questionei-a, dando-lhe um beijo na testa.
- Ah, vovô, eu não consigo ver cores nas coisas. Não gosto disso.
- Sabe Joana, eu era igualzinho a você na sua idade, e também tinha uma caixinha de lápis de colorir e saía rabiscando tudo o que via.
A menina estava atenta às minhas palavras e eu continuei:
- Mas, o vovô já não enxerga mais as cores que estão nesses lápis que te dei. Hoje, o vovô enxerga como todo mundo, em preto e branco.
Joana olhava confusa para mim, enquanto um sentimento de compaixão tomava conta, me abraçou e começou a derramar pequenas gotículas em meus braços.
- Ai vovô, quer que eu te dê meus lápis? – Perguntou Joana, olhando-me.
- Minha pequena, não chore... Eu não posso mais ver cores, é verdade, mas um dia eu pude, assim como você vê. Posso te contar um segredo?
Joana tirou uns fios de cabelo do rosto e com a cabeça, respondeu que sim.
- Olha aqui nos meus olhos. Repara bem... Consegue ver? – Perguntei, puxando a pálpebra inferior com dois dedos.
- O que vovô?
- Olha direitinho, Joana.
Ela observou, atenta aos detalhes e logo achou o que eu me refiria.
- Vovô, são essas pintinhas coloridas dos seus olhos?
- Eu sempre fui um menino esperto, quando vi que meus lápis iam acabar, guardei um restinho e colori o fundo dos meus olhos. Vez ou outra, eu ainda vejo as cores, quando me dou a esse prazer. Elas estão guardadas dentro de mim e jamais deixarei que elas morram.
Joana ficou contente em saber do meu segredo, me deu um beijo no rosto e voltou ao que sempre fizera, colorir. E lembro-me de ter rezado naquela noite, rezado muito, para que os lápis de Joana durassem pra sempre, ou o maior tempo possível.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Joia.

“Ele tentou me oferecer uma joia que eu desconhecia, mas não falava minha língua
Virei às costas e disse que fosse, não queria mais constrangimentos
Ouvi seu choro baixo em sintonia com o barulho dos seus passos fortes
Mas apenas fui, aquela joia não me interessava nenhum pouco
Nenhum pouco.”


sábado, 25 de junho de 2011

A Menina Que Sorria.



Lavínia sempre foi uma menina sorridente.
Lavínia era um doce de criança, sempre a pular e a cantar a vida,
Lavínia, além de tudo, tinha lindos olhos recheados com pureza,
Mas Lavínia não era igual às outras crianças,
Lavínia tinha as mãos viradas ao contrário,
Ninguém gostava das mãos de Lavínia, nem mesmo seus pais.
Sempre que conhecia gente nova, bastava mostrar as mãos e pronto, já era a deixa para o estardalhaço,
Mas Lavínia não via motivo pra tanto, ela ainda era a mesma sorridente de sempre.
“Desentorta essas mãos, menina!” era o que sua mãe berrava da cozinha,
“Ajeita essas mãos, Lavínia!” era o que seu pai gritava do quarto.
Lavínia chorava, chorava e depois ia brincar no jardim, como sempre fizera, feliz.
Um dia, encontraram o corpo de Lavínia, com várias marcas de arranhões e agressões;
“Eu avisei para desentortar essas mãos, eu avisei.” Pensaram os pais da menina.
Não, eles não tinham consciência do sorriso de Lavínia.



Dedicado à Karolinne Santos

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Visita.

Era uma vez uma visita que pôs-se a entrar muito à vontade.
O homem velho de braços cansados sempre chegava às quatro e meia da tarde.
Tomava chá, comia biscoitos caseiros e danava-se a falar do seu dia anterior,
era tudo monótono,rotineiro; mas ele tinha prazer de conversar com aquele outro senhor.
O ritual antes de ir, ao anoitecer, era sempre o mesmo: “Dê-me biscoitos para que eu agrade a minha senhora?”. E lá ia o velho homem com um pacotinho de biscoitos nas mãos, passo a passo para casa.
Todos as tardes ele passava horas falando de como era formosa a sua esposa, uma mulher caprichosa e que cuidava bem dele. Contava das maravilhas de sua comida e de como ela deixava as roupas cheirosas e macias. Mas, numa rápida observada, o senhor só usava duas roupas, que estavam sempre sujas e fedidas, além de sua magreza doentia.
“Pobre Manoel, viúvo há tanto tempo, talvez tenha pirado... Nem mesmo lembra-se de que perdi a audição já há alguns anos.” Era o que o outro senhor pensava ao fechar a porta.

sábado, 18 de junho de 2011

Negar.


Você me negou o direito de te abraçar,
Me negou o direito de estar perto e observar,
Me tirou até a vontade de te admirar,
Você não me cedeu a mão quando te pedi,
E trancou as portas e janelas da tua casa.

Triste, eu te digo,
 Eu só queria ser teu amigo.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Inativo.

Ultimamente tenho comido fubá cru com um pouco d’água, é só o que me dão.
Simplesmente não posso reclamar, plena inatividade,
A casa está fria e sem vida, e minha cama, incrivelmente morna,
Com os pés descalços, vou ao banheiro e me olhar no espelho, só.
Um vulto vem perturbar a culpa das minhas imperfeições me avisando do jantar,
E perambula pela casa, e cutuca a minha culpa.
Não posso ir sem deixá-lo, mas também não posso ficar,
Das minhas mãos penduradas para fora da cama escorre um liquido vermelho e espesso,
Mas não tenho nada cortante por perto...
Já sei, são os ponteiros dos relógios, eu nunca sei a hora exata,
Talvez seja castigo, ou talvez seja o preço de deitar e dormir sem ter nada no dia seguinte.

sábado, 11 de junho de 2011

Cidade Prostituída



            Terceira ou quarta vez que verifico a minha imagem refletida no painel do ônibus. A viagem aqui nessa cidade é longa e essa imagem me seduz de um jeito que não consigo evitar. Talvez eu seja um louco complexado, ou só mais uma vítima dessa metrópole prostituída, o fato é que não tenho forças pra ignorar tudo aquilo que anseio melhorar no meu outdoor, o meu corpo. Durante uns bons vinte anos, uma cidadezinha do interior serviu de palco para a minha vida, mas eu nunca gostei, pra falar a verdade. As ruas eram muito monótonas e as coisas, muito fáceis, além do prejuízo que toda aquela normalidade vinda de pessoas tão comuns causava ao meu jeito excêntrico e mimado de encarar as coisas.
            Eu estava cansado e precisava cair em um novo universo, e ele estava apenas a quilômetros de distancia. Eram muitas vindas para a cidade grande, onde tudo é muito diferente da rotina que me persegue naquele fim-de-mundo, minha tia Maria me dava doses do que eu não tinha em pequenos passeios. Os prédios, as avenidas ultra movimentadas, arquiteturas impecáveis, cores, muitas cores, além das pessoas apressadas nos seus caminhos individuais, que em nada lembravam as gentilezas do povo do interior. Era tudo muito contrastado com os meus costumes e era isso que me entorpecia.
            As voltas eram sempre tristes, a minha cama me aguardava ansiosa para saber de tudo o que eu havia descoberto de diferente e inovador, meus travesseiros chatos sempre me escutavam, nem que fosse por pura obrigação. Eu sou aquariano, e sempre tive orgulho de ser torto – ou melhor, nem tanto – e as pessoas me amavam ou me desprezavam por ser assim. Não posso negar que a convivência com a cidade grande ajudou bastante nisso, nem que fosse pela fantasia de imaginar como tudo seria ali. Um dos meus fracassos: A fantasia. Ela alimentou muitos dos meus desejos enquanto não ia para a capital. As pessoas seriam iguais a mim, iriam me adorar e tudo ocorreria como o combinado, estudos, emprego, galgar, carreira, vida confortável, felicidade. Plano simples, né? Ah, esqueci do amor – capítulo à parte.
            Excentricidade mais romantismo; nunca soube lidar com isso direito, mas é mais umas das características que aquário me forneceu ao berço. Quando a adolescência chegou, o dilema veio fazer umas visitas e terminou por se agregar. Olha, ele é muito chato e me deixou cansado, terminei por mandá-lo embora. Foi bem complicado e chorei algumas vezes, mas me dei por vencido e tendo que tomar a decisão: Aceitar a minha homossexualidade. Sim, eu sempre gostei de garotos, mas cá entre nós, quem quer ser um viado? Ainda que alguns anos eu tentei gostar das curvas, seios e cabelos longos, decidi não lutar mais, minha praia era outra. Nesse meio tempo, nas passadas pelas avenidas, em frente aos colégios da capital, se aglomeravam estudantes de todas as idades, próximas a minha faixa etária. Eu desejei muito carregar os livros de um daqueles colégios. Desejei muito. Eu teria que fazer amigos ali, ou eu não me chamava Boneco Torto.
            Eu não sabia como fazer, por tanto, só ficava na espreita e observava como um menino de rua faminto observa as pessoas comerem num restaurante. Queria muito ter novos amigos ali, queria poder adentrar no universo de pessoas diferentes, com gostos parecidos, tinha certeza que me sentiria bem, era nisso que eu acreditava. Foi pela internet, a internet me ajudou a fazer as primeiras amizades na capital e, bingo! Uma das primeiras era lésbica. Sinceramente, era o que eu queria naquele momento. A aceitação de mim mesmo foi um fator decisivo, fui levado a descobrir um outro universo dentro daquele novo universo, era composto por três siglas: A primeira era G, a segunda, L, e a terceira era S de sapo.
            Minhas passeadas pela cidade grande deram uma intensificada, estaria adentrando naqueles becos onde homens e mulheres se entregavam ao prazer oculto e pecaminoso da homossexualidade. Ambos se deleitavam com o prazer dos deuses, e eu era que não ia ficar parado. Naquelas vielas marginalizadas, conheci muita gente. Havia jovens, adultos e até pessoas de mais idade. Vez ou outra, tinha um point novo, e lá estava eu. Mais uma vez, o costume da metrópole me seduzia com toda a sua distinção daquele lugar distante de onde pretendia sair o quanto antes, aquela cidadezinha já não me favorecia em nada.
           Aos poucos, as coisas foram aumentando de nível e eu passei a conhecer mais e mais gente. Tudo isso só se mostrava mais contrastado a cada passo, com tudo o que eu estava habituado. Comecei a perceber umas coisas que imperavam nos lugares que freqüentava: Futilidade e a concorrência desleal. Certa vez, quis fazer amizade com uma águia que via passar para cima e para baixo, até a chamei algumas vezes. Demorou pra ela atender meu pedido, mas quando ela, enfim, desceu, notei que não era uma águia e sim um abutre. Que ave horrenda! Alimentava-se de podridão e pela pose, se achava o rei do pedaço. Olhou-me com desprezo e eu não gostei disso. Fui embora me sentindo muito mal e antes de virar a esquina, olhei pra trás e jurei que pisaria na cabeça daquele abutre algum dia. Promessa feita.
            O tempo parecia voar diante das minhas aventuras e eu só percebia o quão diferente era de tudo aquilo. Encontrei muitos abutres iguais ao primeiro e aquilo me enojou, em contra partida, estava sendo empurrado para a futilidade que dançava livre e solta naquele lugar. Numa certa volta para casa, pus-me defronte do espelho e me analisei. Olá vaidade, seja bem-vinda! - Velha chata, magricela. Ok, concordo que ela me ajudou muito me adequando ao estilo da cidade grande e que não consigo me desfazer de sua companhia, mas ela é chata. Fez a maior amizade com o perfeccionismo, meu irmão siamês, e pronto, os dois vivem me infernizando, por isso não se surpreenda caso me veja parado em algum lugar fascinado pelo reflexo de algum espelho com mil e um defeitos.
            Eu já estava entregue e apaixonado por toda “Wonderland” que era a grandeza de uma só cidade e já era tarde demais quando me deparei com a guerra dos falsos gigantes. Não tive como não me assustar. Em cubículos tão pequenos escondiam-se verdadeiros gigantes com mais de 6 metros, os chamados egos. Eu era pequeno, me senti totalmente indefeso e acuado. Fui pisado e jogado longe diversas vezes, comecei a perceber que o abutre não era tão mal, afinal. Conheci crianças iguais a mim, vítimas da tirania dos falsos grandalhões, e aos poucos fui descobrindo qual era a dos grandões: Eram plantados e cultuados pela futilidade. Seu adubo era espelhos quebrados, etiquetas que valiam os olhos da cara e uma passarela infernal, onde um agredia o outro através de garras subentendidas, todas com nomes e tipos diferentes. Uma dessas era a falsidade... Nossa, era a mais comum. Os olhares incisivos também contavam, e sinceramente, era o que mais doía. E andar naquelas passarelas se tornou insuportável, só pra constar.
            Eu comprei um gigante, acoplei-o às minhas costas e passei a andar assim, tinha que me defender! Mas ele é um doce, sabia? Não tinha olhares, nem garras. Apenas uma lança cheia de veneno. Uma vez me disseram que esse veneno era um tipo de sinceridade, mas eu não ligo para o que seja, ele faz efeito e está bom demais; os outros egos não se aproximam e o meu cabelo me protege dos olhares.
            Meu romantismo sempre me atrapalhou nessa cidade enorme. Eu sempre achei que seria predestinado a alguém e seria tudo como o destino pusesse o melhor nos meus braços, apenas mais um personagem feliz de um conto de fadas. Mas quantos estão na fila esperando a mesma coisa? Quantos gostariam de ter a mesma sorte que eu quero ter e chegaram na melhor idade de mãos abanando? Quantos ainda estão em depressão? Não, a felicidade é uma equação infinitamente incalculável, muitos tem pequenas fórmulas incoerentes com o dia-a-dia, mas no geral, ela é impossível de ser prevista. Costumo dizer que é uma questão de pura sorte, assim como ganhar na mega-sena. Ainda há um outro fator: O que é verdadeiramente o amor? É aí que a fórmula entra na jogada mais uma vez, não poderia responder sem ela. Numa teoria simples, é gostar de alguém, sem preconceitos, sem interesses, sem conotações mundanas. O amor é um presente divino. Será?
             No decorrer da minha vivencia na metrópole, eu vi muita coisa, me desiludi até. Dei-me conta de que aprendi o que precisava para o desmame. Não, o destino não te dá presentes caros, como um carro importado, e sim uma bengala pra te ajudar a caminhar. A batalha de egos também se aplica (e muito bem, infelizmente) ao amor. O topo disputado a unhadas se refere também à beleza e a vaidade do status, além, é claro, da voz da carne. Músculos, pele impecável, etiquetas que valem salários, rosto indiscutivelmente perfeito... Todos querem o ideal de beleza do lado. Uma vez eu li que nesses lugares, as pessoas são classificadas em “Belas” e “Feras”. Só pra explicar, as feras querem as belas e as belas querem as belas, tudo muito relacionado com o topo, sempre. Por algum motivo, a multidão em geral quer se destacar no meio de tantos, e já refleti muito sobre isso. Cheguei a várias conclusões desastradas, mas uma delas é a insegurança e a dor de ser mais um no meio de uma infinidade de rostos, muitas vezes, mais bonitos do que o seu. Andar de mãos dadas com uma bela seria a concretização de que ele não seria apenas mais um. Só que, as belas também querem o topo, uma concorrência absurda, mas que eu faço parte dela – Porque você acha que eu estou tão fissurado com a minha própria imagem? Não me olhe desse jeito, eu admito que adquiri uma futilidade. Se você estivesse no meu lugar, com certeza me entenderia. Concorrência é concorrência.
            Eu ainda estou em fase de elaboração de uma teoria própria definitiva sobre o amor. Sei que não posso mais ignorar tudo o que absorvi, já está impregnado nas minhas entrelinhas. A parte de sorte ainda está intacta, é mesmo uma questão de ser sortudo ou não. Mas, de um outro ângulo, há muitos subtópicos antes de se chegar ao sinal de igual a, a certeza e que tenho é que o meu sinal sempre será diferente a. Mas, falando de outras feras, sei que saem em extrema desvantagem, e ao invés de se dar valor, elas preferem correr atrás das belas, onde, o máximo que ganham é uma aliviadazinha no escuro, e depois, só o “te conheço?”. Ah, esqueci de mencionar que sou uma fera, mas deixo claro que nunca me deixei corromper em me tornar descartável.
            Essa viagem que estou fazendo é para arrumar um emprego, estou me mudando pra cá. Revendo a minha trajetória, percebi o quanto era (ou ainda posso ser, nem sei ao certo) sonhador. Nada saiu conforme os meus devaneios, nada é como o destino num conto infantil, ele não é gentil. A cidade toda é um organismo vivo; aqueles prédios enormes, carros, lojas e gente, tudo isso era tudo o que eu sempre quis pra mim, mas hoje vejo de um jeito inteiramente diferente. Estou corrompido e machucado, desiludido e esperando o que vai acontecer, apesar das cicatrizes e da certeza de que serei apenas mais uma célula sem importância vital, ainda assim creio que aqui esteja um certo futuro, nem que seja breve, pois ainda não me sinto completo – Pelo menos não como pensei que estaria. Talvez o problema seja eu ou o resto do mundo, é só mudar o lado da moeda.
          Ao olhar a mãe com uma criança no colo que subira a pouco, umas paradas atrás, parei e observei aquela imagem. O menino tem lá seus oito anos e já apresenta trajeitos. O mundo hétero é mais fácil que o homo? Não sei e talvez nunca saberei, pois pendo para um lado só. Mesmo assim, queria que a vida daquele menino fosse mais fácil do que tem sido a minha. Não dá pra imaginar como tudo será daqui a dez ou quinze anos, espero que melhor. “Dorme criança, e aproveita esse colo que te protege. A caminhada é tortuosa.”. Pensei, e antes que ele abrisse os olhos,levantei da cadeira e pedi parada, meu ponto tinha chegado.

sábado, 4 de junho de 2011

Semideus.



Meus pêlos estavam um pouco mais crescidos, mas nem me dei conta. Meus dias se tornaram como as águas de um rio, iam se empurrando; numa matemática simples, eles tinham apenas dois estados pra mim: O “quando estava acordado” e “quando estava dormindo”. De um jeito rotineiro, não ficou tão depressivo se fosse olhado mais de perto.
Eu me tornei um semi-deus frio quando se tratava de mim mesmo. A luz do sol era cegante e eu preferia o caleidoscópio que o escuro das cortinas fechadas combinado com a minha imaginação fértil me proporcionava ao som de algum clássico do rock. Por uma tela de alguns poucos centímetros quadrados, acompanhava a vida de muita gente. Eu estava drogado pra falar a verdade. Aquelas histórias vinham com sabor de jujuba e brigadeiro e me dava em doses mínimas o que eu nunca pude ter, pelo maldito desprezo que o destino tinha para comigo. Ele me odiava com todas as forças.
Deixou-me de fora da brincadeira, apenas com um jogo de passatempo nas mãos. Não sei quais foram as minhas notas em “Comportamento, atitude e socialização dos seres humanos”, mas vivo na ilusão de ter passado de ano, com isso, tento ajudar outras pessoas na minha mesma situação: Aprender sozinho e na prática. Talvez eu soubesse demais ou não soubesse porra nenhuma, o fato é que andava sempre só, a ordem dos fatores não alterou em nada o resultado, esse curso nunca me serviu. Em suma, nunca mais acreditei em finais felizes depois de ler a primeira tragédia, ainda no começo da juventude; o resto das tramas soa mentiroso demais depois de uma boa olhada numa avenida movimentada.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Lição 1: Café-Com-Leite.


 
Surgi de uma poça d’água num beco escuro, já era quase a hora do início do espetáculo e eu saí andando a passos largos. O sobretudo longo que vestia por cima do traje social preto escondia quase que perfeitamente as minhas asas, não fosse a corcunda que deixasse no alto das minhas costas. Mais parecia um aleijado.
A moça que atendia na bilheteria do teatro me olhou de cima a baixo por cima dos óculos meia-lua assim que parei na frente de seu balcão. Suas sobrancelhas arqueadas davam um ar de chatice, mas não liguei, enfiei a mão no bolso direito e tirei as notas de dinheiro que surgiram instantaneamente, era o valor certo. Paguei e peguei o bilhete, entreguei ao rapaz que estava de frente à sala 9, a sala da peça que eu assistiria.
Era o último dia de uma peça fracassada, ou seja, o teatro era só meu e de Alex, Vanessa e Carmem, os três únicos personagens da trama. Escolhi a cadeira ao lado do corredor central, na sexta fileira. Sentei-me e pacientemente esperei o inicio da peça. As cortinas se abriram e a trama que até então não tivera um grande apreço do público começou. Um enredo simples, falando de uma amizade cotidiana, sorrisos, alegrias, tristezas compartilhadas. Nada muito elaborado, mas eu via algo mais naquele enredo. Os três carregavam no pescoço um pedaço de cascalho, cada um com sua cor e forma diferenciadas, pendurados por um fio fino de couro e eu queria cada um deles.
Uma hora de espetáculo, dentre todas as cenas cotidianas que nunca tive e as cortinas se fecharam. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito palmas com intervalos lentos. Permaneci de pé no corredor central, sabia que eles sairiam por aquele caminho. Trinta minutos depois eles saem, risonhos e se deparam comigo. Estendi um sorriso na face e cumprimentei cada um. Aceitaram tomar um café comigo naquela noite fria.
Chovia forte e a cafeteria mantinha um clima agradável. Ora ou outra, um deles mirava a minha “corcunda”, mas não se manifestaram em perguntar o porque, em contrapartida, eu fitava o meu objeto de desejo: os três colares.
Tive que ter um certo jogo de cintura para que eles revelassem qual era a dos colares. Não entendi direito, claro. Nem em vida terrena eu consegui entender relações humanas, mas percebi que aqueles colares tinham um elo entre si e entre seus respectivos donos. Eram extremamente importantes para cada um e coletivamente falando.
Num roubo em plena avenida ao sairmos, o danado do ladrão pediu além do dinheiro, também os colares, meu interesse foi aguçado naquele momento. O que eles fariam sem os colares? Ficaram um pouco tristes, mas percebi que o elo não foi embora junto com os colares. Aquilo era cascalho e couro, só. Me despedi deles, que pediram algo pra contato. Dei um papel que logo ficaria totalmente branco, eu não poderia ser achado.
Saí andando procurando um beco escuro com uma poça d’água, iria voltar da mesma forma que vim. O trombadinha estava caído no chão logo mais a frente e eu aproveitei para pegar os colares, tive nas mãos. Poder nenhum senti, sensação nenhuma senti, emoção muito menos. Era só cascalho e couro, não tinha nenhuma ligação entre si. Sorri de canto de boca e joguei as três bugigangas no primeiro lixeiro que achei.
Na verdade, eu não queria as pedras e os fiapos de couro. Eu queria o que nunca tive. Queria a mesma ligação que tinham aqueles cordões. Queria tudo o que a peça retratava, o tal do café-com-leite proporcionado por ligações fraternas. Aquelas porcarias de cascalhos não serviam pra nada.
Maldito simbolismo humano.
Continuei a observá-los por longos e longos dias. Era sempre a mesma coisa, viviam o que foi retratado na peça e eu ficava cada vez mais confuso e abobalhado com aquilo. Sempre coisas tão pequenas, mas que enchiam meus olhos.
Mas eu não poderia ter aquilo, não tinha um colar e nem fazia parte do meio terreno, eu era avesso. Mas sempre estava por perto, sempre.