terça-feira, 26 de julho de 2011

Em Busca do Eu-Sátiro.



E cresci dentre as ninfas, entregue-lhes fui ao nascer. Um bando de Dríades deu-me a sabedoria como se eu fosse uma delas. Ensinaram-me a caçar com sutileza dos passos leves e transfiguração, a fabricação de perfumes de flores rosa-claras e amarelas, além dos afazeres domésticos e a magia da cura. Presentearam-me com seus mais secretos costumes e fizeram ambíguo o meu crescimento a cada primavera. À puberdade, meu traços eram ninfíticos – minha pele cresceu clara como um lírio branco, exalava um cheiro leve e doce como mel e meus cabelos eram macios como a água de um lago calmo. Mas permitiram-me a imagem de menino que me era por direito, portanto, fizeram-me híbrido – dei-me conta disso ao deparar-me com meu reflexo – Toquei-me no queixo, no peitoral, na virilha e no pênis, além das coxas e bunda. Alguma rigidez estava escondida em algum lugar ali, arrisco dizer que deveria ter até pelos também. Indicaram-me o caminho dos bosques, ao me verem entregue ao tormento das dúvidas. Meu andar era ninfítico, demorei a achar a trilha correta.
Deparei-me com o vale dos sátiros. Por certas vezes, presenciei o cortejo dessas criaturas rudes, desprovidas de sensibilidade, às ninfas do meu bando. Mas, naquele vale – cujo odor forte que permeava aqueles ares era desconhecido para mim – assustei-me com os modos daquelas bestas. Não davam-me qualquer fio de atenção, e, tolo como sou, foi preciso várias rosnadas para que entendesse que não podia ser ninfítico naquele lugar, refugiei-me num salgueiro alto, por medo. E ali em cima passei a viver pelos dias subseqüentes. Um ninho de hipogrifo formou-se em meus pensamentos em tais dias e noites de solidão, deparava-me com um conflito de gênero. Olhei-me mais uma vez e percebi o quanto era parecido com aqueles selvagens: Tinha as mesmas patas, chifres e um corpo levemente robusto. Mas, poucos pelos, pele alva, cabelos macios e voz confortante. Algo estava errado comigo.
Numa noite, sonhei com uma viagem a Delfos e pelo amanhecer, usei de transfiguração para passar despercebido por entre os sátiros e iniciar minha jornada. Encontrei loureiros e cheguei ao oráculo. Banhava-me na fonte Castália quando certa Pitonisa de cabelos vermelhos como fogo aproximou-se para entrega de uma profecia. Prosou a história de Édipo e disse-me com voz embargada: “O que queres é algo adquirido, o tempo te será um amigo chato e de exarcebada paciência. Voltas pelo mesmo caminho e pega pelas estradas os teus traços satíricos.”

sábado, 23 de julho de 2011

Segredos de Garotos.


Eu nunca tinha revelado a Marcelo o desejo que eu sentia por ele. Talvez porque nem eu mesmo estava disposto a aceitar, o que mudou com o tempo. Nos conhecemos e logo pegamos uma amizade sincera e para um freqüentar a casa do outro, foi um pulo. Passávamos tardes a fio nos divertindo como dois adolescentes em plena erupção dos hormônios, trancados no quarto, folheando revistas de mulher pelada, aprendendo na prática o gosto do prazer. Mas cada um na sua, lógico, como dois machos tem que ser. Quase sempre, depois disso, íamos jogar bola. Entretanto, não era só a imagem daquelas mulheres que me faziam chegar ao êxtase, mas também o corpo de Marcelo, o cheiro de Marcelo, todo o carinho que eu sentia pelo meu camarada. Comecei a aceitar aquilo e me deparava pensando nas possibilidades noites adentro.
Depois de um jogo, num fim de tarde, fomos para minha casa, ele dormiria lá. Foi um ato de loucura, eu sei, mas enquanto ele tomava banho, cheirei as roupas suadas que ele tinha usado para o jogo da tarde. Um arrepio atravessou o meu corpo e milhares de sensações a cada segundo em que aspirei o cheiro do meu amigo. Algumas horas depois, tudo certo, eu estava deitado na minha cama e ele, no colchão no chão, puro clichê. Desci a minha mão e pude tocar sua barriga sarada pela primeira vez. Medo, tesão, vergonha, impulso, tudo vinha a todo momento e com o silencio consentido dele, deslizei a mão. Olhava fixamente para o teto, passeava por sua virilha, até alcançar o tão sonhado objeto dos meus devaneios. Mãos, bocas, toques, abraços, peso, dominação e a briga pelo prazer. Gozo. Caímos exaustos em sono profundo.

- Bem cara, vou indo. Talvez no final de semana eu apareça por aqui de novo.

- Beleza, velho.

terça-feira, 19 de julho de 2011

"Oi, eu escolhi a homofobia."



Numa tarde tulmutuada, no meio de uma praça, no centro de uma cidade qualquer...
 – Oi, posso sentar aqui? Estava no meio daquele tumulto e estou com falta de ar...
[...] Obrigado!
[...] É interessante essa coisa de discriminação, né? Muita gente não sabe o que há por trás de todo esse show. Eu nunca disse isso a ninguém pra te falar a verdade. Talvez pelo código secreto de ética gay incrivelmente rigoroso que paira por todos dentro dessa categoria. Mas algo me força a admitir que sim, eu escolhi ser gay. Lembro que quando eu era criança eu via algumas “bichas” na rua e eu, sinceramente, achava muito bonito. Não sei se eram as cores, o jeito espontâneo ou o descaramento de alguns deles, mas eu os achava interessantes. Talvez eu até seja masoquista, às vezes penso. Sempre me encantou a forma que vivem os homossexuais. Algo me atraía naquela vida de rejeição e sofrimento. Ver as noticias praticamente diárias sobre as agressões e mortes de crimes de ódio e homofobia enchia meus olhos de esperança para uma realidade que, mais tarde, seria a minha. E assim seguiram-se uns anos. Fui me condicionando a dar certas “pintas” e aquilo foi mudando o meu psicológico de alguma forma. Ainda tem o fato importante de alguém ter vindo até mim e me mostrado duas opções: Heterossexual e homossexual. E eu escolhi a segunda, lógico (risos). A partir daí as coisas foram mais fáceis para a minha nova condição, comecei a ficar com meninos.
Olha, no começo eu não gostava muito, sabe? É meio nojento aquela barba roçando, aquele corpo rijo, cheio de músculos, além do principal, é claro. Foi doloroso, muito doloroso. Pensei até em desistir naquele momento, mas lembrei do meu sonho da vida gay, um ideal de vida que tenho o maior orgulho de ter escolhido. Do mesmo jeito de antes, me adaptei à minha nova condição e ela acabou por ser menos desagradável com o tempo. A dor se foi, o que era o incômodo maior, e deu lugar a mais um trunfo na jornada que eu escolhi. Admito que tinha certas ocasiões que meus olhos me traíam e eu me pegava olhando para a bunda das meninas, mas eu me segurava. “Eu sou gay e muito gay!”, era o que eu dizia. Hoje, adquiri auto-controle e meus olhos não me traem mais. Mas, desmistificando uma outra mentira alegada pelos gays, posso afirmar que é impossível um homem sentir atração por outro. Nós sempre pensamos em mulheres “na hora do vamo ver?”.
Ah, ia esquecendo-me de falar sobre a religião. As bichinhas sempre alegam que ser gay não é uma escolha e blábláblá – o que acabei de desmentir. Há também a questão religiosa, né? Muitos gays saem em confronto com os guias espirituais de seitas que não os aceitam, mostrando partes absurdas do livro que eles seguem, como Êxodo 21:7, que fala expressamente em vender filhos como escravos, ou até a própria idéia do apedrejamento para adúlteros, filhos desobedientes e muitas outras coisas. Além de aprovar o sacrifício humano também, como em 1 Reis 13: 1-2. Mas sinceramente, isso não vem ao caso. Lei é lei e assim deve ser cumprida. Ser gay não é motivo suficiente para desviar algo que há milênios vem sendo cumprido de forma ética, justa e eficiente. “Ah, mas é reflexo de um povo antigo, de costumes primitivos...”, ora, faça-me o favor! Já não basta às mulheres se rebelarem e estarem a cada dia mais distanciadas do papel destinado a elas? Como deixa expresso Efésios 5-22 e 24? Não, é tudo baboseira dessa militância que alega só querer o direito de ser feliz. Ora, todos os gays sabem da realidade, porque optar por ela? E aliás, se é isso que eles vão ter... Porque, então, escolheram?
A violência impera para pessoas como eu. Bichinha, viadinho, mariquinha, florzinha, nossa, são tantos apelidos que eu tenho que até perco a conta, sabia? (risos). Isso é gostoso. Pode até parecer estranho para algumas pessoas ouvir isso, mas sim, é muito bom sentir essa discriminação na pele. Já fui agredido também, diversas vezes. Sou masoquista, afirmo e assino embaixo. E tem a humilhação que é um deguste à parte. Gay gosta de sofrer, nós nascemos para isso e abraçamos a cada dia que saímos na rua. O medo é uma adrenalina que nos acompanha quando somos pintosos, ou estamos com algum namoradinho, ou quando, por ventura, alguns pitboys (muitos deles escolheram secretamente a mesma vida que os gays, mas deixam tudo às escondidas) descobrem que já saímos com homens ou mulheres (no caso das lésbicas). Acho até que apimenta a relação toda essa montanha-russa de medo e adrenalina! (risos).
Hoje em dia eu moro só, mais um reflexo da minha escolha. É interessante sentir na pele como as pessoas, depois que sabem que você optou por ser gay, te resumem à palavra GAY. Simplesmente apagam o “bom filho”, o “bom amigo”, o “estudioso”, o “Bom caráter”, o “Honesto”, o “brincalhão”, o “divertido”, o “companheiro para qualquer momento da vida”. Todos esses adjetivos passam a não existir mais e quando te olham, vêem apenas a palavra GAY. Foi o que aconteceu com a minha família, eles me viraram as costas. Sabe, eu lembro que eu sempre fui muito apegado à minha mãe. Lembro que, quando tinha 4 ou 5 anos, ela me banhava com água morna nas noites de inverno. Lembro também quando o meu pai chegava do trabalho, eu, um tamanhinho de gente, atravessava a sala correndo e ia pros braços dele. Os jantares de Natal, festas de aniversário... Nunca mais soube o que é isso depois da minha escolha. Minha mãe não me dá mais colo, na verdade, nem me liga mais. Talvez tenha até esquecido de mim. A família, eu tenho certeza, eles não lembram de um gay, que só servia para manchar a imagem de boa família que era sustentada há gerações.
Ta vendo? Eu consegui tudo o que eu almejava ao escolher essa vida. Fui agredido, humilhado, esquecido... E estou feliz, eu optei por tudo isso, eu escolhi e me dei bem, obtive o mais sublime sucesso na minha trajetória. Consegue ver o sorriso na minha face?... Bem, temo ter que ir agora. Veja só, só te falei tudo isso porque eu tinha que revelar a alguém o que realmente se passa nesse meio gls. Não é questão de nascer assim, todos escolhem, sempre escolhem, entretanto o código de ética não nos permite revelar isso, mas hoje eu presenteio um desconhecido com a verdade porque hoje foi me dada a mais alta medalha por escolher ser gay. Tudo o que eu passei valeu apena e consegui chegar onde alguns não conseguem. Vê esse furo no meu peito? Eu fui baleado (risos). Me chamaram de bichinha e viadinho, sacaram uma arma e atiraram. Eu não podia estar mais realizado.

 




sexta-feira, 15 de julho de 2011

A Cidade de Rabiscos.


            Num lugar muito, muito distante, no mundo dos desenhos, havia uma rua escura. Rodeada por árvores rabiscadas com carbono. Ao final – nunca explorado – da mesma rua, dava-se conta do céu nublado que nunca chovia, do frio e do ar seco. O governo naquele lugar era falho, o dinheiro era papel rabiscado que não valia muito. Todos eram pobres. Muitos com desgastes emocionais e psicológicos tão grandes que tornavam-se mesquinhos, egoístas e infelizes. Na calmaria da noite, apenas os passos de Pegeto e seu fiel amigo, Pedrinho, ecoava pelo lugar. Pegeto era um velho rascunho feito há algum tempo, talhava seus objetos em madeira 2d, ele era carpinteiro. Pedrinho ajudava-o como podia – Pedrinho era um boneco de porcelana que chegara desgastado à casa de Pegeto numa noite tempestuosa. Ele estava fraco e sem algumas partes do corpo – pois nutria um carinho por seu guardião.
        Eles voltavam da feira com mais rabiscos velhos de madeira, feitos com lápis 6b, desta vez para por na lareira, além de algumas tintas a óleo para os traços de Pedrinho. No número trinta e seis – uma casa pequena, onde não tinha variedade de cores, apenas tons de branco, preto e cinza, e, quem sabe, verde – os dois entraram e trancaram a porta para se proteger do frio. Poucas horas depois da janta, a lareira já estava acesa e Pegeto trabalhava na pintura do pequeno boneco. Começou com os olhos, depois foi a vez das roupas e os sapatos, além da cor, cuidadosamente escolhida para a pele. Pedrinho estava todo arrumadinho novamente, nem parecia que era o mesmo de meses atrás.
        Pegeto sabia que Pedrinho não pertencia àquele lugar. Ele era um boneco lindo, de uma fina porcelana, que logo estaria na estrada a procura do seu lugar por direito. Ali era o país dos rabiscos, e Pedrinho era feito de material nobre. Pegeto preparava-se todas as noites para a iminente partida de Pedrinho, via-o dormir na cama improvisada e depois saía pelas ruas escuras a procura de um bar. Enchia a cara para livrar-se do tormento da solidão que chegava perto, como um amigo chato que a muito não o via e queria de qualquer jeito a sua companhia. Certa vez, numa dessas voltas, Pegeto encontrou a casa vazia e uma carta em cima da cama de Pedrinho, despedindo-se. Contrariando suas expectativas, ele não sentiu-se tão triste como pensara, mas teve saudades do boneco. Foi até a porta da frente, abriu-a e disse: “Boa sorte, meu pequeno!”, na esperança de que o vento levasse-as para Pedrinho. Fechou a porta e entregou-se a rotina, sempre com o ferrolho destrancado, caso Pedrinho aparecesse para dar um “Oi”.

Dedicado a Daniel.

domingo, 10 de julho de 2011

Palavras.


A única coisa de que me lembro é que nós estávamos na sala, sentados no tapete que mais parecia algodão ao se pisar. Ele estava sem camisa e a luz de fim de tarde que adentrava pela fina cortina que cobria parcialmente a janela da sala, o deixava muito sexy e ao mesmo tempo o transformava numa criatura sem malícia, era algo surreal. Se, por uns flashes de poucos segundos me dava tesão, aquela imagem despertava em mim algo muito mais além da carne.
Ele me olhava com um sorriso tão doce que os meus instintos responderam àquele estímulo, esboçando outro sorriso que, meus próprios instintos, o tornavam inegavelmente sincero. O toque de suas mãos me ensinava tal linguagem que me instigara a curiosidade. As primeiras vogais, letras e até mesmo uma palavra: Sempre – me disse o significado depois de eu ter acabado de repetir os gestos. Um momento tocante ali se deu assim que acabei de terminar a tal palavra, ele se aproximou mais um pouco e ficou a explorar minha mão esquerda com a dele. As sensações que aquele toque inocente me transmitia, eu posso ilustrar como uma bagunça de sabores e texturas que nunca havia provado antes, e, com todos aqueles carinhos em minha mão canhota, ele me ensinava mais letras e palavras.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Deserto.

Hoje eu, incrivelmente, me peguei sem direção mais uma vez. Algum sentido além dos cinco que, normalmente, é dado a todo pobre mortal, me dizia que sempre houve alguma coisa errada. Eu não chorei e nem vou chorar, não vejo motivo. História antiga que me fazia ter certeza de alguma coisa nessa vida, mas na verdade, tinha lá suas farsas. Depois de tanto tempo, mais alguma pessoa mascarada veio me dizer, num timbre familiar, “Olá”. Eu conhecia sua máscara e não sua face. Dói dar-se conta disso, mas o caminho está cada vez mais seco e árido, imbrotável e deserto. Era mais um túmulo que eu deixava pra trás, sem crucifixo e nem identificação.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Bater: Falsa Coroa.

Eu me fiz acreditar, criança tola. Olhando-se para o espelho agora, o que vês? Mas antes de começar, dispa-se do véu opaco da vaidade da sua individualidade, olhe-se com olhos de outrem. O que vês? Vês a tua estatura baixa, teu cabelo duro e teus olhos de cachorro morto. Por tanto, tire essa coroa de plástico que enfeita essa tua cabeça grande, cuja mesma coroa, julgas ser de ouro maciço; não é, ela quebra, é plástico, dos mais vagabundos. Aconselho-te também a quebrar esse pedestal de barro que exibes, pensando ser mármore. Ah, e teu preço é baixo. Se não compras nada, é porque pedes mais do que tu podes pagar. Não viu o casaco de pele de grife? Só estava no teu corpo por ser defeituoso, caso contrário, não irias nem poder tocá-lo. Caia na real, meu bem, hoje é lei de oferta e demanda, compra e venda, até os próprios sentimentos estão expostos em vitrines; portanto, não chore a sua solidão, não grite por socorro, porque sei que você é de escolher a dedo. Cuidado na hora de apontar.
[...]
E não me venha com réplicas, meu papel é bater. Você escolhe se abraça a dor ou vira as costas.

domingo, 3 de julho de 2011

Outono da tarde (a dream).

Depois do café da tarde eu passei pela Torre Eiffel. Alguns passos mais adiante e eu jurei ter te visto por lá, dentre as poucas pessoas e aquela atmosfera descolorida e opaca que eu tanto gosto. O pôr-do-sol durou mais que o habitual e a brisa fresca da primeira tarde de outono em Paris me fez lembrar você. A saudade me apertou o peito, mesmo. Tanto que imaginei te abraçar ali; foi meio maluco isso. Olha, só quero dizer que te amo. Não se esqueça de mim, que eu estarei com você, mesmo que não me lembre de ti a maior parte do tempo. Agora tenho que ir, vou acordar.



Se cuida, meu amor.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Embriagado.


Embriagado. Cheguei em casa e caí na cama, embriagado. Talvez só um pouco, o que me permitiu todo o ritual das outras noites normais. Eram apenas fantasias que eu usava como calmantes, nunca passou disso. Eu não me toquei, nunca fiz isso. Se eu já tentei? Bem, já. Tenho um pau entre as pernas e queria saber usá-lo como tal, manobrar e extrair aquela dor chata incrivelmente prazerosa que todos os machos que passaram pela terra tanto amam. Mas eu não sinto. Muitas vezes chego a pensar que não aprendi a ser macho. Em outras, penso ser tão híbrido que me tornei um terceiro gênero; sem pênis e nem seios, ou, paradoxalmente, até os tenha. Num banheiro sujo, fedendo a mijo acumulado, é onde eu tenho a percepção da diferença. Acho até que deveria ser naquele lugar que eu deveria começar. Não sou macho. Numa sala de mulheres, também vejo convergências, o que me dá a certeza de que também não sou fêmea. Num caminho perpendicular, fui ao médico. Minha taxa de hormônios é baixa, provavelmente.

Atrás.


Eu vi, ela saiu correndo

Ele correu atrás

Eu estava atrás  atrás de uma parede distante

Ele a agarrou por trás

Ela gritou e pediu ajuda

Eu não me movi.

Colorir.



A luz do dia caía, enquanto eu a observava atento, como um bom avô. Eu a levei para dar uma volta no parquinho e Joana não perdeu tempo, coloriu as traves do balanço, o escorrega e até alguns coleguinhas que conhecera naquela tarde. Ela estava com seus sete anos, e não desgrudava da caixinha de lápis de colorir que eu a presenteei no seu segundo ano de vida. Menina danada, pintava tudo o que via morto, em tom de cinza, preto e branco. Começou pelo quarto, depois passou a colorir de tons de rosa, azul, vermelho e verde as paredes da casa. Logo após pintou a mãe, o pai, a avó, a mim e até a babá. No caminho para o jardim de infância, riscava de azul ou verde as paredes mortas daquela cidade.
Nas páginas do caderninho, havia mais pinturas e desenhos, muitos sobre seu futuro, do que as lições escolares. Chegou a pintar a professora, pois dizia que ela não conseguia ver cores na coitada. Eu não a culpo, eu também ganhei um caixinha de lápis na minha infância, mas isso já faz muito tempo e hoje não consigo enxergar as cores que minha adorada neta tanto distribui por aí.
- Joana, venha cá. – Chamei-a, interrompendo o que fazia.
- Oi, vovô. – Disse, caminhando até mim.
- Porque você vive pintando as coisas? – Questionei-a, dando-lhe um beijo na testa.
- Ah, vovô, eu não consigo ver cores nas coisas. Não gosto disso.
- Sabe Joana, eu era igualzinho a você na sua idade, e também tinha uma caixinha de lápis de colorir e saía rabiscando tudo o que via.
A menina estava atenta às minhas palavras e eu continuei:
- Mas, o vovô já não enxerga mais as cores que estão nesses lápis que te dei. Hoje, o vovô enxerga como todo mundo, em preto e branco.
Joana olhava confusa para mim, enquanto um sentimento de compaixão tomava conta, me abraçou e começou a derramar pequenas gotículas em meus braços.
- Ai vovô, quer que eu te dê meus lápis? – Perguntou Joana, olhando-me.
- Minha pequena, não chore... Eu não posso mais ver cores, é verdade, mas um dia eu pude, assim como você vê. Posso te contar um segredo?
Joana tirou uns fios de cabelo do rosto e com a cabeça, respondeu que sim.
- Olha aqui nos meus olhos. Repara bem... Consegue ver? – Perguntei, puxando a pálpebra inferior com dois dedos.
- O que vovô?
- Olha direitinho, Joana.
Ela observou, atenta aos detalhes e logo achou o que eu me refiria.
- Vovô, são essas pintinhas coloridas dos seus olhos?
- Eu sempre fui um menino esperto, quando vi que meus lápis iam acabar, guardei um restinho e colori o fundo dos meus olhos. Vez ou outra, eu ainda vejo as cores, quando me dou a esse prazer. Elas estão guardadas dentro de mim e jamais deixarei que elas morram.
Joana ficou contente em saber do meu segredo, me deu um beijo no rosto e voltou ao que sempre fizera, colorir. E lembro-me de ter rezado naquela noite, rezado muito, para que os lápis de Joana durassem pra sempre, ou o maior tempo possível.