sexta-feira, 29 de abril de 2011

Lição 1: Café-Com-Leite.


 
Surgi de uma poça d’água num beco escuro, já era quase a hora do início do espetáculo e eu saí andando a passos largos. O sobretudo longo que vestia por cima do traje social preto escondia quase que perfeitamente as minhas asas, não fosse a corcunda que deixasse no alto das minhas costas. Mais parecia um aleijado.
A moça que atendia na bilheteria do teatro me olhou de cima a baixo por cima dos óculos meia-lua assim que parei na frente de seu balcão. Suas sobrancelhas arqueadas davam um ar de chatice, mas não liguei, enfiei a mão no bolso direito e tirei as notas de dinheiro que surgiram instantaneamente, era o valor certo. Paguei e peguei o bilhete, entreguei ao rapaz que estava de frente à sala 9, a sala da peça que eu assistiria.
Era o último dia de uma peça fracassada, ou seja, o teatro era só meu e de Alex, Vanessa e Carmem, os três únicos personagens da trama. Escolhi a cadeira ao lado do corredor central, na sexta fileira. Sentei-me e pacientemente esperei o inicio da peça. As cortinas se abriram e a trama que até então não tivera um grande apreço do público começou. Um enredo simples, falando de uma amizade cotidiana, sorrisos, alegrias, tristezas compartilhadas. Nada muito elaborado, mas eu via algo mais naquele enredo. Os três carregavam no pescoço um pedaço de cascalho, cada um com sua cor e forma diferenciadas, pendurados por um fio fino de couro e eu queria cada um deles.
Uma hora de espetáculo, dentre todas as cenas cotidianas que nunca tive e as cortinas se fecharam. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito palmas com intervalos lentos. Permaneci de pé no corredor central, sabia que eles sairiam por aquele caminho. Trinta minutos depois eles saem, risonhos e se deparam comigo. Estendi um sorriso na face e cumprimentei cada um. Aceitaram tomar um café comigo naquela noite fria.
Chovia forte e a cafeteria mantinha um clima agradável. Ora ou outra, um deles mirava a minha “corcunda”, mas não se manifestaram em perguntar o porque, em contrapartida, eu fitava o meu objeto de desejo: os três colares.
Tive que ter um certo jogo de cintura para que eles revelassem qual era a dos colares. Não entendi direito, claro. Nem em vida terrena eu consegui entender relações humanas, mas percebi que aqueles colares tinham um elo entre si e entre seus respectivos donos. Eram extremamente importantes para cada um e coletivamente falando.
Num roubo em plena avenida ao sairmos, o danado do ladrão pediu além do dinheiro, também os colares, meu interesse foi aguçado naquele momento. O que eles fariam sem os colares? Ficaram um pouco tristes, mas percebi que o elo não foi embora junto com os colares. Aquilo era cascalho e couro, só. Me despedi deles, que pediram algo pra contato. Dei um papel que logo ficaria totalmente branco, eu não poderia ser achado.
Saí andando procurando um beco escuro com uma poça d’água, iria voltar da mesma forma que vim. O trombadinha estava caído no chão logo mais a frente e eu aproveitei para pegar os colares, tive nas mãos. Poder nenhum senti, sensação nenhuma senti, emoção muito menos. Era só cascalho e couro, não tinha nenhuma ligação entre si. Sorri de canto de boca e joguei as três bugigangas no primeiro lixeiro que achei.
Na verdade, eu não queria as pedras e os fiapos de couro. Eu queria o que nunca tive. Queria a mesma ligação que tinham aqueles cordões. Queria tudo o que a peça retratava, o tal do café-com-leite proporcionado por ligações fraternas. Aquelas porcarias de cascalhos não serviam pra nada.
Maldito simbolismo humano.
Continuei a observá-los por longos e longos dias. Era sempre a mesma coisa, viviam o que foi retratado na peça e eu ficava cada vez mais confuso e abobalhado com aquilo. Sempre coisas tão pequenas, mas que enchiam meus olhos.
Mas eu não poderia ter aquilo, não tinha um colar e nem fazia parte do meio terreno, eu era avesso. Mas sempre estava por perto, sempre.

segunda-feira, 25 de abril de 2011



Por favor, não me fale em aparências. Meu terreno é instável!

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Neutro.



Havia uma cadeira de frente a um grande relógio.
Eu sentei nessa cadeira ao acordar.
Eu permaneci o dia inteiro sentado.
Chamaram-me à porta, mas eu não atendi.
Não tomei banho e mal comi.
As gotas escorrendo pela janela denunciavam a chuva.
Mas eu não senti frio e nem calor.
Nem bem e nem ruim.
Não senti nada.
Nada.
Insanamente Neutro.

terça-feira, 19 de abril de 2011


Eu descobri que não posso despejar cera no peito e achar que sou feito de pedra.

domingo, 17 de abril de 2011

Domingo.

Foi ao som do ventilador e à luz fraca do nascer-do-sol  que me vi seco e sem ar. A madrugada fluía horizonte adentro, enquanto as estrelas iam dormir. Eu continuava acordado, me deitei sem um “Boa Noite” e não terei o meu “Bom Dia”. A rotina anda sem gosto, me contento com pequenos frascos e a abstinência me acompanha. O dia seria um domingo, sem religião e sem filme ao entardecer.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Boneco.

Há um fio de dezenas de metros passando por dentro do meu corpo oco, mantendo todas as minhas pequenas partes fixas umas às outras. Pareço ser de aço, mas não sou. Somente uma sorte me protege das pancadas, ou seria experiência? Já quebrei tantas vezes...
Tenho uma perna menor que a outra, meu nariz é de uma cor diferente de todo o resto do látex que me envolve; meus olhos são de um tipo de acrílico muito fraco e as asas que existiam nas minhas costas estão quebradas, restam apenas as elevações na parte de cima. Nunca foram perfeitas mesmo...
Meu nome é imperfeito, eu sei. Estou na terceira prateleira de uma lojinha chinfrim na cidade de São Nunca, de onde diversas vezes eu saí e pra onde eu sempre volto. Estou quebrado, ultrapassado e sujo, aguardando a eternidade dentro de uma caixa velha, mas nunca deixei de ser um brinquedo. Só não tenho com quem brincar.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Barquinho.



Por Favor,
Não deixe o rio secar
Para que eu cuide dos meus barquinhos
Ninguem me ajuda a cuidar
Eu cuido sozinho.







sexta-feira, 8 de abril de 2011

ParaPeito.


Eu não saía de casa. Passei a viver enclausurado pelas paredes daquele apartamento que cheirava a mofo. Cortinas velhas, cadeiras velhas, chão esmagado por meus passos de ida e volta. Copos quebrados ainda me serviam e eu ainda os usava, garfos tortos e muita coisa fora do lugar. A janela era o meu passatempo de qualquer hora do dia, observando a opacidade das pessoas que andavam pelas ruas, nem se dando conta de minha existência.
Pessoas batiam à minha porta, o meu sorriso era notável do outro lado da rua, até eu descobrir que se tratava de mais opacidade. Eram todos muito neutros. Eu voltava ao parapeito. Cigarro como mestre sala e sempre de pernas cruzadas, eu apenas observava, descendo com o mesmo sorriso sempre que solicitado e voltando para o mesmo lugar. Eu tomava banho morno e alguns remédios para dormir como o leite quente da madrugada.
O cheiro das rosas era sempre agradável, a areia da praia e o amanhecer. A morosidade das músicas que eu escutava, casava muito bem com as fotos de infância rasgadas que eu guardava debaixo do travesseiro.
Até agora eu ando em círculos, mas já fiz meu pé-de-meia. Não posso passar dia e noite vagando pelas ruas, pois o quebra-cabeça ainda não se completou e só Deus sabe quando será. Eu sei que falo em fragmentos e nem sei onde eu queria chegar. Vou pegar meu cigarro e voltar pro meu lugar.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Peso.


Passaram alguns dias e algumas semanas. Eu não ligaria, não falaria e muito menos olharia. Apenas o fato de você ainda me acompanhar em cada esquina, numa forma de esperança, era um assombramento. Eu que sempre fui avesso e você tão vaidoso, eu que sempre fiquei na defensiva e você que sempre oscilava, entre a procura e a aversão. Enchia-me de dúvidas e apenas uma certeza crescia: Você era mais um D. Juan. Mas, infelizmente, eu sentiria saudade. Não me acostumei a não te ver entrar ou sair sem dar um pio. Não me acostumei sem tuas fugas de tuas próprias procuras. E, principalmente, não me acostumei a não ter que desvendar cada atitude, cada virgula e cada entrelinha proveniente de ti. Mas eu preciso lembrar que você partiu sem ao menos fazer barulho ao fechar a porta.

Tenho que confessar, apesar de todo o peso do orgulho que carrego sobre meus atos, eu confesso. Tenho duas fotos tuas e um gráfico. Tenho duas músicas tuas e a lembrança da camisa azul. Tenho duas doses de esperanças, neutralizadas por vinte quilos de orgulho – "Será tão pesado assim?". Talvez eu nem queira saber.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Voar

Chegamos então até o ponto mais alto da cidade. Uma igrejinha servia de atrativo e logo um pouco mais a frente estava um precipício. Percebi que ele olhava fixamente para o céu e se perdia em um devaneio que chegava a dar medo. Chamei-o pelo nome:
-Jonas!
Ele interrompeu seu olhar para o céu e me fitou. O olhar tornou-se um tanto doce e ele disse com uma voz que jamais esquecerei:
-Oi...
Sorri. Sorri e fui até perto dele para dar-lhe um abraço, que ele retribuiu com muito carinho. Voltou a admirar o céu e a grandeza que se estendia abaixo do precipício. Ficou assim por um tempo e não ousei pedir-lhe atenção.
-Você já sentiu a sensação de voar? - Disse-me ele ao pé do ouvido.
Estranhei a qualidade da pergunta e respondi que não, nenhum ser humano está permitido a sentir tal sensação.
-Eu sei voar. – Afastou-se, abriu os braços e atirou-se de uma altura de mais de mil metros.
Foi um momento rápido que demorou um bocado a ser processado por mim. Sinceramente, custei a entender que ele realmente tinha feito aquilo.