Alimentando cisnes
João Pedro morrera aos dezessete, perto dos dezoito. Manuzeara de forma principiante a arma que tirara do criado-mudo do pai – tinha visto há uns dias o pai esconder embaixo de uma pilha de papéis – na surdina do sono da tarde que era habitual do seu velho pai. Dali para o estrondo que tirara sua vida, foram poucos minutos. Diante do cadáver de seu amado, Carlos não chorou. Segurou firme, como um homem de verdade o faria. Porém, ele deveria tê-lo feito, pois a imagem do seu amante infame não saíra de sua cabeça durante um bom tempo; ela parecia suplicar alguma coisa. Coisa essa que ele nunca deu ouvidos.
Logo depois de sua esposa morrer – ainda um tanto jovem e solitária, diga-se de passagem – ele passou a alimentar cisnes. Todos os dias caminhava alguns kilometros, desde sua casa até o parque onde, ao centro, se estendia um lago. Ao pôr-do-sol, a paisagem era linda, parecia até uma pintura, pensava. Tirava o saquinho de milho de um dos bolsos e punha-se a jogá-los aos punhados perto da água. O velho adorava ver os cisnes se aproximarem, famintos. Esse era o ritual diário de um velho ranzinza e manco que vivia atormentado por Tisífone.
Certo fim de tarde, não se deu conta do passar do tempo. Após o saquinho de milho esvaziar, o velho pegou no sono. Acordou tarde e o parque estava envolto da treva da noite. Não havia luar naquela noite fria. Mancando, devido à guerra que lhe carregara a perna esquerda, fora lenta e pacientemente tomando o caminho de casa. Mas o parque era grande. E à noite, perigoso. Não percebeu, por tanto, que um grupo se aproximara. Cercaram-no e pediram para esvaziar os bolsos. Mas, ao mirar bem para os rostos dos rapazes, num esforço para captar a luz que se esvaia de algum poste há poucos metros, seu olhar se estancou num certo moreno. Moreno esse cujos traços ele conhecia bem.
A gangue não era lá tão paciente, e o silêncio do velho, petrificado com a imagem de um dos rapazes à sua frente, não foi de grande ajuda. O espancaram. O espancaram como se não ouvesse vida nas suas carnes sofridas pelo tempo. Tornou-se um boneco nas mãos daqueles jovens brutos e crueis. Passando de mão em mão, toda vez que chegava às do tal moreno, ele implorava-lhe desculpas. Implorava-lhe que o perdoasse. Implorava-lhe que entendesse a sua honra de homem. E chegou até a implorar que o matasse. João Pedro voltara. Voltara para cobrar-lhe a dívida que tinha para com ele. Ele mentiu. E não só mentiu, também matou o grande amor de sua vida. Matou-o de forma traiçoeira, pelas costas.
Os banderneiros deixaram o velho agonizando num lugar às margens do lago. Enquanto o rapaz moreno, cujo semblante estava escrito as lembranças de João Pedro, caminhava junto aos outros, Joaquim dava, então, seus últimos suspiros. Os últimos instantes em que sua alma estava limpa, e sua dívida, paga. Seu amor por aquele rapaz atlético nunca morrera. Nas noites em que amava a esposa, era nele que Joaquim pensava. À morte da mulher que ele sugou a vida às migalhas, ele não chorou. Não chorou pela falta de amor que tinha para com ela, diferentemente do outro, que amara insanamente. Mas, naquele instante em que estava estendido na grama úmida dos arredores de um lago fedorento, o amor brotara da natureza selgavem que ali permeava... Os cisnes velaram sua morte lenta. Aos segundos que se arrastaram como uma presa abatida gritando pela vida, Joaquim chorara o que não havia chorado. Chorara pelo peso de um assassinato. Pela felididade de uma familia inteira que ele quebrou como um vidro inútil. Pela vida que jogou num esgoto sem fundo. Pelas lembranças de um amor. Pela covardia que o fez emburacar no primeiro boeiro que vira.
Três respirações antes de se entregar ao sono da morte, Joaquim deu-se conta de que João Pedro nunca morreu totalmente. Nunca conseguiria matá-lo para sempre.
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