Olhando o planeta que nasci de uma forma tão única como
agora, vejo a magnitude da criação. Uma imensa bola azul que respira vida e que
comporta a vida. O azul tão ríspido e vívido que vejo, me deixa o sopro cruel
da saudade. Julgo, como um tolo, talvez, que o ápice deste planeta seja mesmo o
amor. Há tantas formas, tantos meios de o amor nascer e crescer. Nunca soube amar,
penso, mas agora vejo que tudo o que vivi de uns tempos pra cá, foi temperado
com amor. Um tipo de amor único, fraternal, embrulhado de desejo. Eu tive um
amigo, que abracei; um irmão, que estava comigo o tempo todo; e um amante, que
perturba minha mente inquieta até num momento como este. O azul dessa imensidão
de águas me lembra o mesmo azul por qual me apaixonei: o azul dos olhos dele.
Após o sucesso final da terraformação de Marte, eu nasci.
Vivenciei de perto a mudança da elite para a Nova Terra (como o antigo planeta
vermelho passou a se chamar). Há tempos que esse grupo restrito de
pentalionários investe grande parte de seus lucros na experiência faraônica da
transformação de marte em uma réplica fiel à Terra. Sim, porque há muito a
Terra mergulhou numa escuridão, formada pela camada de nuvens de poluição
acumuladas nas camadas da biosfera. Além disso, o caos estava instalado e a
população foi dizimada por pestes, guerras e os mais catastróficos acidentes de
usinas de fusão e fissão. A maioria das casas passou a ser construída no
subsolo, pois os furacões e afins eram constantes e o clima era algo absurdo de
se tentar entender. Havia surtos de contaminação biótica e nuclear por todas as
zonas de pobreza do mundo inteiro. Havia também muitas mutilações em crianças
recém-nascidas causadas pela contaminação de lixos nucleares. Eu nasci com
defeitos congênitos – poucos eram os que nasciam perfeitos – tinha cicatriz
imensa no olho esquerdo e também não falava. Minha forma de comunicação era por
meio de bilhetinhos que eu escrevia num bloquinho de papel. Estava sempre com
esse bloquinho.
Morava num retangular da parte sul da Zona-Europa, na parte
que correspondia ao antigo país chamado Itália. Ainda havia muitos resquícios
da cultura e língua italianas no retangular inteiro. Minha casa, construída no subsolo
de uma antiga rodovia, era muito simples. Nós entrávamos por uma porta de aço
maciço, no chão. Meu quarto ficava ao centro de um corredor. E, ali mesmo, na
minha cama, aprendia a me comunicar. Todos os dias. Minha mãe me ensinava uma
linguagem de sinais, que ela mesma desenvolvera, como também me ensinou a ler e
escrever. E quando, no meio de uma aula, Carizza, minha irmã caçula, invade o
quarto aos gritos, avisando sobre uma nave de porte 36 que havia cortado o céu
a pouco e aterrissara no audarrio abandonado de naves lucvelocita.
Saímos todos, bem como todos os moradores do retangular, emergindo do concreto
seco; estávamos todos apreensivos. Meus pais exigiram que entrássemos, mas eu
não o fiz; tranquei minhas irmãs e voltei à superfície e corri para o audarrio.
A grande porta lateral da nave descera à terra. Era algo colossal, nunca havia
visto de perto uma nave de porte 36.
Os milhares de tripulantes desceram aos poucos. Havia tanta
gente que nem acreditei que mesmo uma nave tão grande suportasse toda aquela quantidade.
A porta lateral que servia de pista de descida era bem larga. As pessoas, de
ambos os lados, estavam apreensivas, e até demorou alguns instantes para
tentarem algum contato. A comunicação era um tanto falha, pois as línguas eram
bastante divergentes. Mas, bastou um pouco de observação de minha mãe e eles
falarem que vieram do Brasil, para mamãe se propor a falar brasileiro. Minha
avó tinha vindo do Brasil, servir na guerra dos três sonavios. Mamãe
lembrava-se da estrutura da língua, e ela foi a intermediadora. Aos poucos,
tudo foi explicado e o momento de tensão, atenuando-se. Em meio à conversa, a
líder deles pediu para que o resto descesse da nave, que ela partiria para
levar as outras parcelas das pessoas às outras zonas. Dentre àquelas pessoas
esquisitas que andavam a passos lentos, avistei um grupo diferente. E naquele
grupo havia um garoto que chorava. Nunca vi alguém mais lindo na minha vida, a
não ser nos antigos merchans de centenas de anos atrás, que eu via nas pastas
de conservação que mamãe me mostrava, do tempo em que a humanidade ainda não
era brutalmente açoitada pelas consequências do capitalismo. Mas, eu estava
encantado por aquele garoto de beleza singular, que demorou a levantar a cabeça
do ombro de uma senhora, e tinha a aparência um tanto abatida. Minha atenção só
se esvaiu dele ao ouvir a noticia da catástrofe: A América do Sul tinha sido
engolida pelo mar. Fiquei perplexo, se bem que não era algo novo, pois com a
parte oeste da África tinha acontecido o mesmo, assim como as Filipinas.
Os líderes dos três retangulares mais próximos se reuniram e
decidiram o que fazer. A nave alçou voo e partiu para distribuir os outros
tantos milhares de tripulantes para a Zona-Europa. Após muitas discussões, foi
decidido que as obras para novas moradias começariam no máximo em três dias, o
planejamento tinha de ser muito meticuloso pois espaço era algo complicado de
se administrar naqueles tempos. E, enquanto as casas não ficavam prontas, os
flagelados se tornariam agregados de muitas das famílias do retangular. À minha
casa, foram apenas três, uma família. Minha casa era uma das menores do
retangular X-Itali.
Logo após a tomada de decisões, todos foram hospedar as
famílias desabrigadas. A que ficou conosco não demorou mais que dois dias, pois
uma parte das famílias foi para uma antiga escola abandonada que serviria de
abrigo. E, então, tive a privacidade do meu quarto de volta, pude pensar em
tudo o que gostava de pensar. Não sei o que estava acontecendo comigo, pra
falar a verdade. A imagem daquele garoto não me saía da cabeça, e enquanto
pensava nele, o sono se afastava mais e mais. Varei uma noite com a imagem dele
em toda parte do quarto, só cheguei a dormir pouco antes do amanhecer.
Androzza veio me perturbar o sono. Desde a chegada daquelas
pessoas, ela não vinha me visitar. Era uma amiga querida, uma das poucas que
não havia morrido ainda, andávamos sempre juntos. Ao chegar à minha casa, pouco
depois do desjejum, trouxera-me notícias. Notícias de um garoto cujos olhos
pareciam a imensidão do mar. Um garoto belo, dizia ela, que havia sido obrigado
pelos próprios pais a deixá-los para trás e vir para a Zona-Europa. Dizia que
ele estava triste, que chorava pela falta dos pais. Questionou-me se eu não
queria ir conhecê-lo, e num impulso, peguei o bloquinho e escrevi “NÃO”. Um
“não” impulsivo e categórico. Aquele garoto me deixava nervoso, mas não revelei
a Androzza. Então ela voltou para casa, tinha que dar atenção aos hóspedes. “Principalmente
a um deles, né?!”, pensei.
As semanas se arrastaram e as casas já estavam quase
prontas. Androzza vivia com o garoto para cima e para baixo, mal tinha tempo
para nós dois. E eu já o detestava. Muitas foram as vezes em que ela, em sua
companhia, vinha me chamar, mas eu sempre recusava. Ele, parado há alguns
metros, observava. Numa dessas, verifiquei a cor de seus olhos, e até mesmo de
longe, dava para perceber as águas-marinhas tão ávidas. Mas a minha atitude era
sempre a mesma, ficar longe. Vez ou outra, seguia-os, numa surdina, para
observá-los. Aquele moleque lindo, cujos olhos eram duas águas-marinhas, tomara
minha amiga de mim. Ele não merecia perdão.
Eu e Androzza passamos a ficar mais distantes. Nunca
aceitava seus convites e, um belo dia, ela parou de me convidar. Estava
cansada. Foi então que meu afastamento de Androzza me fez cair em culpa após
saber de sua morte. Sua família morrera de contaminação biótica, por ingestão
de comida contaminada. O garoto de olhos azuis foi salvo, ele ainda não tinha
descido para comer com a família, e assim que o fez, deu-se conta daquelas
pessoas que o acolhera agonizando à mesa de refeições. Nada pudera fazer, a não
ser correr para pedir uma ajuda inútil, pois essas organelas eram geneticamente
modificadas e avassaladoras. Havia a suspeita de que essas contaminações fossem
elaboradas pela elite, temendo uma revolta popular global. Mas, quem haveria de
fazer alguma coisa? Justiça não existia há muito.
Os corpos da família de Androzza foram levados para a
fornalha fúnebre. O garoto estava terrivelmente cabisbaixo. A tristeza
assolava-lhe o coração mais uma vez. Eu
não fui à cremação dos corpos e nem ele. Ao invés disso, fui para o rio que
cortava o retangular. Fiquei atrelado à grade de proteção, observando a nuvem
cinza que cobria o céu, pensando em como a humanidade sofria naqueles tempos.
As lágrimas vinham conforme as lembranças de Androzza empurravam meus
pensamentos de fuga e se punham a me torturar.
- Ela gosta muito de você. – disse alguém se
aproximando, enquanto estava parado frente à grade da encosta do rio. O clima
era frio àquela tarde. Virei-me e me surpreendi em constatar quem era.
Ele estava lá, estático, à minha frente. Seus cabelos, tão
lisos, dançavam com o vento enfraquecido pelas intempéries do clima. A pele
alva emitia uma serenidade e uma calma enormes. E os olhos... Malditos olhos!
Sempre tão malditos! Estava entregue e hipnotizado por aquelas águas marinhas
invadindo minha cabeça sem pedir licença. E, inconscientemente, eu tentava
achar palavras em algum lugar...
- Você fala diferente... – dei uma risadinha abafada, mas
logo percebi a idiotice que escrevi.
Como todos os outros, ficou curioso pelo jeito de me
comunicar e pela minha cicatriz. Percebi pela forma de me encarar. Mas, minhas
barreiras contra aquele inimigo que me levou a amizade com Androzza foi
esmagada como um inseto fedorento. Não pude resistir ao seu senso de humor e
sua companhia agradável. Conversamos a
tarde toda – eu com meu bloquinho e ele com seu sotaque estranho –, o
começo da noite, e até mais, pois pedi para minha mãe deixá-lo ficar por lá por
algum tempo. Ele dormiria no meu quarto, num colchão de lençóis velhos. E assim
foi, ele não ficou apenas aquela noite, mas tantas e tantas outras. Minha
família o adorara e acabamos por acolhê-lo. Sou o único homem dentre quatro
filhos, e sentia falta de um irmão para conversar coisas de menino. Amizade era
algo raro naqueles dias. Ele passou a ser meu alicerce para me sustentar quanto
à ausência e à culpa que a imagem de Androzza me causava. Assim como eu fui o
dele, consolando-o nas suas noites de profunda tristeza, quando a saudade de
sua família biológica e a adotiva apertava-lhe o peito e exprimia-lhe lágrimas
dos olhos.
Passamos a ser inteiramente amigos. Eu tinha apenas a sua
companhia e ele tinha apenas a minha. Andávamos pelos arredores do retangular,
como dois desbravadores, e como tais, descobrimos muitas coisas, como um esgoto
abandonado que servia como casa de morcegos. Era num ponto alto e dava para ver
a imensidão de quando o rio se fundia com o mar. Estávamos sempre inventando
brincadeiras imbecis que nos recheavam as manhãs e as tardes. Eram momentos tão
únicos e singulares, cada qual com suas emoções. Talvez, para ele, não
significasse muito, mas para mim, eram tudo. Ele me bastava para me sentir
menos só, menos deslocado e mais feliz. Eu o admirava em todos os aspectos.
Nunca conheci alguém mais doce. Não havia uma noite sequer que eu não
agradecesse a Deus por tê-lo enviado a mim.
Sua beleza me desconcertava e fazia-me sentir estranho em
certas ocasiões, como quando ele saía do banho, ou trocava o macacão na minha
frente. Talvez ele nem desconfiasse, julgo eu. Havia vezes que eu instituía
certas brincadeiras ridículas, como quem encara quem por mais tempo, apenas
para poder admirar-lhe os olhos com mais liberdade. E eu sempre ganhava, óbvio,
pois não me cansava. Algum impulso estranho me fazia propor essas coisas
malucas. Impulso esse que vinha daqueles azuis tão instigantes. Apesar de perceber
sua inocência à distância, ele ainda exercia um certo mistério sobre mim. Quem
sabe não fosse o corpo? Talvez a pele, o cheiro? O amor natural nunca morrera,
mesmo com todo o sofrimento da humanidade diante de tantos séculos.
Porém, o que eu não sabia era que tinha mais alguém de olho
na beleza daquele rapaz de pele alva e barba surgindo, tímida. Aqueles olhos,
cujo paraíso estava escrito neles, chamaram a atenção de um top-ameba. O cara fedia
a riqueza e poder. Era um designer de realidade holográfica, pelo que soube.
Estávamos voltando para casa, por uma antiga estrada de
concreto, quando uma navterrea estacionou bem à nossa frente, deixando-nos
assustados. A viseira fumê da cabine levantou-se e o cara desceu, com seu
cheiro penetrante – um bom perfume, certamente – e fez uma proposta, que,
indiscutivelmente, se estendeu apenas ao meu amigo. Ao ver que seria apenas a
ele, recusou, mas eu fui insistente e escrevi no bloquinho que ele aceitaria,
mostrando-o para o ameba. O homem ranzinza não gostou muito da minha ousadia em
dirigir-lhe a palavra, mas eu estava ajudando-o a levar meu grande amigo para a
Nova Terra. A proposta era para que fosse imagem primária dos novos projetos
holográficos para entretenimento. Ele faria parte da elite, ele poderia ser
feliz na terra-paraíso dos pentalionários. Ele viveria no Olimpo e seria um
deus. Deus esse, que eu reverenciaria até o fim dos meus dias.
Convencê-lo foi bem difícil, o caminho inteiro fui
mencionando tudo o que ele poderia ser, e iria se livrar do imenso sacrifício
que era viver na Terra, e talvez, algum dia, voltar para procurar seus pais.
- E visitar os amigos, se sentir saudade. – Escrevi, tímido.
Ao chegar e dar a
noticia a mamãe e às minhas irmãs, todas ficaram muito felizes por ele. Mamãe
fez até um bolo para comemorarmos! Mas eu sabia que ele estava triste. Desde a
partida dolorida de sua terra-natal, até aqueles dias, sem notícia dos pais,
nós fomos os que o acolheram, fora a família de Androzza, que jazia em paz.
O destino de sua partida era um laser que me castigava. À
noite, ao banho, chorei como um condenado. Sentiria falta dele, muita falta. Já
estava chorando a saudade daqueles olhos que me deram conforto por todo esse
tempo. Deixei-o dormir e fui para o quartinho de ferramentas, tentar consertar
um aparelho meio antigo que registrava imagens em 2d, precisava guardar alguma
recordação.
A noite engatinhou
cansada para mim. Mamãe me acordou às 9 da matina, caído na mesa e em cima do
aparelho. Graças a Deus eu tinha consertado. Iria tirar fotos de todos da família
para que ele pudesse levar, mas tinha por ambição uma imagem dos seus olhos.
Passamos a manhã nos divertindo com o tal aparelho antigo, mas ele estava
bastante cabisbaixo. Notando isso, mamãe o falava das maravilhas que ouvira falar
da Nova Terra, e seus sorrisos de resposta eram sem-graça.
Tiramos tantas fotos, mas sempre distantes. Nenhuma captava
com exatidão o que eu queria ficar com o máximo de lembrança que pudesse. O
próximo trabalho foi grafar as fotos, e foi um sacrifício achar um papel
adequado e com qualidade suficiente para que durassem muito. Levou algum tempo
para eu imprimir as fotografias para ele levar. Ele deve ter ficado feliz, pois
seu semblante triste deu lugar a uma pitadinha de luz, num sorriso tímido. Mais
tarde, ele arrumava a bolsa com certa morosidade, típico de alguém que faz a
contragosto. Entrei no quarto e dei-lhe um sorriso, tentando passar conforto e
satisfação. Sentei na cama e observei-o, sem nada dizer. Estava encabulado.
Ainda não tinha tirado a foto que tanto desejara. Nunca tinha sentido um
nervosismo tão grande para escrever alguma coisa. A mão tremia e as palavras
voavam como pássaros assustados. Foi com muita falta de jeito que o disse – por
alto – sobre a minha admiração por seus olhos. E pela primeira vez, ele me
abraçou. Meu corpo parou naquele momento e demorou em responder-lhe o ato que
sonhei durante tanto tempo, mesmo que inconscientemente. Enxugando os olhos,
ele sorriu e se posicionou para que tirasse a imagem em 2d. Tive dificuldade,
pois ainda tremia muito.
Sua viagem estava marcada para a noite. Ele seguiria com o
top-ameba para o norte da Zona-Europa e de lá, embarcaria num avioespacial
direto para a Nova Terra. Estávamos jantando e eu percebia a movimentação aérea
pelas janelas do teto e pelos barulhos dos sonoros motores de alta geração. As
luzes das naves já podiam ser vistas da janela da minha porta. Ao terminarmos,
fomos todos o levar: eu, meu pai, minha mãe e minhas irmãs. Andamos muito até
chegar ao audarrio do outro retangular. Lá havia uma pista apropriada para
naves de tecnologia de ponta. Ao chegar, todo o local estava protegido por um
campo eletromagnético. O deixamos na
ponta de entrada mesmo, já que não poderíamos entrar na zona franca, éramos
apenas nascido-imundos. Eu segui o mais longe que pude com ele, e antes de dar
adeus, ele me abraçou, novamente, engolindo-me o fôlego:
- Vem comigo. – sussurrou ao pé do meu ouvido.
Eu tremi e não consegui dar-lhe adeus. Ele ultrapassou a
faixa mesclada e caminhou sem olhar para trás. A sensação do abraço sumia
gradativamente, enquanto eu observava seus passos pesados. Virei-me, estático,
e segui com minha família para a minha casa. Neguei todos os abraços de
conforto que minha mãe quis me dar, queria ficar sozinho. Pedi para voltar e
vê-lo partir para o céu. Ela tentou-me explicar que não daria para ver, mas ao
perceber que eram meus olhos marejados que faziam tal pedido, consentiu.
Alertou-me para ter cuidado, e seguiu para casa com papai e minhas irmãs.
Cheguei o mais perto que a segurança permitia. Muitos motores terrestres
seguiam para dentro e o círculo do campo de força ainda não havia se fechado,
ele ainda estava ali dentro.
“Vem comigo” zunia nos meus ouvidos. Viveria, então, sem
ele. Disso eu tinha quase certeza. Sim, porque o impulso me clamava para fazer
algo. O mesmo impulso que me dava a certeza de que aquela amizade e a nossa convivência
eram muito importantes para mim. O círculo começou a se fechar, para então, me
separar dele definitivamente. Restava apenas uma pequena fresta, que ainda me
cabia... Pulei. Pulei e cheguei a queimar o braço e meu sapato esquerdo. Segui
à surdina, descalço, já que meus calçados não prestavam mais, a borracha estava
derretida. Um pouco mais e ficaria manco.
Tentei correr sem ser visto e obtive sucesso. A essa altura,
os radares de terreno já deveriam ter sido desligados, já que o campo de força
estava totalmente fechado. Um alarme soou alto e assustador. O avistei indo,
sozinho, colocar sua pequena bolsa no expresso que levaria-a para a nave.
Toquei-lhe o ombro ao alcançá-lo e num instinto de pura felicidade, nos
abraçamos. Algumas perguntas triviais, de praxe, numa situação como essa, e
logo planejamos como eu iria. Iria junto à bagagem, escondí-me numa caixa que
estava destrancada no expresso e lá fui eu.
Foi uma atitude impensada. Conforto-me, porém, em ter
ciência de que foi pelo que sentia. Não havia tanto futuro naquela Terra, já
abandonada pelos “donos do mundo”. A única coisa que me preenchia os dias era a
amizade que o destino me presenteou. Desde muitos séculos atrás que a tristeza
e a desesperança guiam a vida dos homens dessa era, mas para mim, havia um
motivo por qual lutar e por isso eu estava espremido, no meio daquelas bagagens,
iludido com a irreal possibilidade de viver na Nova Terra. Entretanto, fui pego
na nave, pelo laser de descrição total. A ação foi rápida, os seguranças da
tripulação eram bastante hábeis. E arrastado, me levaram até os superiores.
Nunca vi um corredor mais longo. Levado á cabine secundária, fui tratado como
um saco de lixo biótico; eles não tiveram a mínima piedade. Fui humilhado,
abusado, xingado de tantos nomes que nem consigo contar. Meu amigo
apercebera-se da gritaria e abriu a viseira da porta. Ele presenciou tudo. Pude
ver o desespero com que esbofeteava a janelinha de acrílico. Tentei sorrir,
mesmo com o rosto machucado, para passar-lhe uma confiança que eu não tinha.
Aliás, poderia ter. No fundo, tinha esperança de que nos colocaríamos juntos,
depois de tudo. Vejo como a ilusão é algo amenizador em momentos de sofrimento
como esse. Mas não foi assim. No fundo mesmo, eu estava enganado.
Por mais que tivéssemos protestado, não houve conversa. Os
seguranças me puseram um para-quedas, abriram uma porta pequena e me arrastaram
até lá. Ambos estáticos, eu e ele. Eu, sendo arremessado para fora da nave em
pleno vôo, a não sei quantos mil pés. Ele, tão impotente contra a bestialidade do
sistema, que descartava da maneira mais vã qualquer coisa que não lhe servia.
Ainda pude ver seus olhos, e ele estava chorando. Isso me doeu demais. A porta
se fechou e ainda percebi uma risada maldosa no rosto de um dos carrascos,
depois entendi o porquê.
Estávamos definitivamente separados. Ele iria para longe, e
eu voltaria para casa, caso saísse vivo dessa. Tanto esforço para nada, ele
estava partindo e eu nunca mais o veria. Ao pensar nisso, demorei a acionar as
asas do para-quedas. Acionei. Acionei novamente. Acionei mais uma vez e continuei
acionando, desesperado. O para-quedas estava quebrado e eu ganhava cada vez
mais velocidade. Estava mergulhando para uma queda fatal, mas, incrivelmente, a
calma chegou mansa, e eu respirei fundo a conformação. Pus-me a olhar ao redor.
Acima das nuvens existia um outro plano, que era palco das histórias
fantásticas que minha mãe me contava quando criança. Havia o sol à minha direita,
irradiando vida, enquanto à minha extrema esquerda, um disco brilhante me
brindava com uma luz prata que lembrei se chamar lua, e ao infinito, à minha
frente, milhares de pontos de luz.
Mas havia algo mais interessante que tudo aquilo. A fotografia
que havia tirado pouco antes da primeira despedida estava no meu bolso. Tirei e
olhei. E fixado naquele pedaço de papel, mergulhei abaixo das nuvens com a
visão da minha perdição. Naquele momento, aqueles olhos azuis se tornaram duas
pedras preciosíssimas, cujo valor eu nunca poderia pagar.