terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Peso Morto.



Era uma vez um balão
Cujo baloeiro carregava uma pedra de estimação.
Aquela pedra nunca lhe serviu para nada
Só a tinha por que dela ele gostava.
Um dia, decidiu jogá-la fora
Distâncias mais altas ele consegue agora.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Frio.


Eu não quero viver o frio que assola o lado de fora... Há quem tenha hipotermia e nem saiba.


segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Caixinha.




De passos incansáveis, enches a noite minha
Ao som de um maldito polifônico
Calo a aflição de teu pé à pontinha.

O teu palco, o espelho
Aos meus olhos, a fome
De uma dança sem autor, nem pronome.

Ecarte, bailarina!
Gira, gira
Traz-me um sorriso
Tin tin tin tin
Demi pointe.

Guardo a tua doçura
Os teus gestos preciosos de pequena estrela
E a perfeição eterna levada na postura.

A graciosidade que carregas às mãos
De proteção hei de te enlaçar
Para que não mais tema te ver despedaçar.

Serás sempre minha
Em cima de minha escrivaninha
Não te preocupes, a chuva não se demora
Não há tanto interesse lá fora.

Dedicado a Catarina Linda Nunes

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Da tua hipocrisia, eu rio. Rio alto o bastante para que te atormente por uma noite inteira...

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Transcendente.

E que a brisa que passa, desmonte meu corpo de areia. Nunca fiz parte daqui, sou espírito, sou força transcendente. Aqui, sou pássaro sem canto. Minha natureza é a emoção. Quero ser o horizonte, o brilho do mar que reflete o sol.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Aos Teus Olhos

 “Aqueles olhos azuis são duas pedras preciosíssimas, cujo valor eu nunca poderei pagar.”







Olhando o planeta que nasci de uma forma tão única como agora, vejo a magnitude da criação. Uma imensa bola azul que respira vida e que comporta a vida. O azul tão ríspido e vívido que vejo, me deixa o sopro cruel da saudade. Julgo, como um tolo, talvez, que o ápice deste planeta seja mesmo o amor. Há tantas formas, tantos meios de o amor nascer e crescer. Nunca soube amar, penso, mas agora vejo que tudo o que vivi de uns tempos pra cá, foi temperado com amor. Um tipo de amor único, fraternal, embrulhado de desejo. Eu tive um amigo, que abracei; um irmão, que estava comigo o tempo todo; e um amante, que perturba minha mente inquieta até num momento como este. O azul dessa imensidão de águas me lembra o mesmo azul por qual me apaixonei: o azul dos olhos dele.
Após o sucesso final da terraformação de Marte, eu nasci. Vivenciei de perto a mudança da elite para a Nova Terra (como o antigo planeta vermelho passou a se chamar). Há tempos que esse grupo restrito de pentalionários investe grande parte de seus lucros na experiência faraônica da transformação de marte em uma réplica fiel à Terra. Sim, porque há muito a Terra mergulhou numa escuridão, formada pela camada de nuvens de poluição acumuladas nas camadas da biosfera. Além disso, o caos estava instalado e a população foi dizimada por pestes, guerras e os mais catastróficos acidentes de usinas de fusão e fissão. A maioria das casas passou a ser construída no subsolo, pois os furacões e afins eram constantes e o clima era algo absurdo de se tentar entender. Havia surtos de contaminação biótica e nuclear por todas as zonas de pobreza do mundo inteiro. Havia também muitas mutilações em crianças recém-nascidas causadas pela contaminação de lixos nucleares. Eu nasci com defeitos congênitos – poucos eram os que nasciam perfeitos – tinha cicatriz imensa no olho esquerdo e também não falava. Minha forma de comunicação era por meio de bilhetinhos que eu escrevia num bloquinho de papel. Estava sempre com esse bloquinho.
Morava num retangular da parte sul da Zona-Europa, na parte que correspondia ao antigo país chamado Itália. Ainda havia muitos resquícios da cultura e língua italianas no retangular inteiro. Minha casa, construída no subsolo de uma antiga rodovia, era muito simples. Nós entrávamos por uma porta de aço maciço, no chão. Meu quarto ficava ao centro de um corredor. E, ali mesmo, na minha cama, aprendia a me comunicar. Todos os dias. Minha mãe me ensinava uma linguagem de sinais, que ela mesma desenvolvera, como também me ensinou a ler e escrever. E quando, no meio de uma aula, Carizza, minha irmã caçula, invade o quarto aos gritos, avisando sobre uma nave de porte 36 que havia cortado o céu a pouco e aterrissara no audarrio abandonado de naves lucvelocita. Saímos todos, bem como todos os moradores do retangular, emergindo do concreto seco; estávamos todos apreensivos. Meus pais exigiram que entrássemos, mas eu não o fiz; tranquei minhas irmãs e voltei à superfície e corri para o audarrio. A grande porta lateral da nave descera à terra. Era algo colossal, nunca havia visto de perto uma nave de porte 36.
Os milhares de tripulantes desceram aos poucos. Havia tanta gente que nem acreditei que mesmo uma nave tão grande suportasse toda aquela quantidade. A porta lateral que servia de pista de descida era bem larga. As pessoas, de ambos os lados, estavam apreensivas, e até demorou alguns instantes para tentarem algum contato. A comunicação era um tanto falha, pois as línguas eram bastante divergentes. Mas, bastou um pouco de observação de minha mãe e eles falarem que vieram do Brasil, para mamãe se propor a falar brasileiro. Minha avó tinha vindo do Brasil, servir na guerra dos três sonavios. Mamãe lembrava-se da estrutura da língua, e ela foi a intermediadora. Aos poucos, tudo foi explicado e o momento de tensão, atenuando-se. Em meio à conversa, a líder deles pediu para que o resto descesse da nave, que ela partiria para levar as outras parcelas das pessoas às outras zonas. Dentre àquelas pessoas esquisitas que andavam a passos lentos, avistei um grupo diferente. E naquele grupo havia um garoto que chorava. Nunca vi alguém mais lindo na minha vida, a não ser nos antigos merchans de centenas de anos atrás, que eu via nas pastas de conservação que mamãe me mostrava, do tempo em que a humanidade ainda não era brutalmente açoitada pelas consequências do capitalismo. Mas, eu estava encantado por aquele garoto de beleza singular, que demorou a levantar a cabeça do ombro de uma senhora, e tinha a aparência um tanto abatida. Minha atenção só se esvaiu dele ao ouvir a noticia da catástrofe: A América do Sul tinha sido engolida pelo mar. Fiquei perplexo, se bem que não era algo novo, pois com a parte oeste da África tinha acontecido o mesmo, assim como as Filipinas.
Os líderes dos três retangulares mais próximos se reuniram e decidiram o que fazer. A nave alçou voo e partiu para distribuir os outros tantos milhares de tripulantes para a Zona-Europa. Após muitas discussões, foi decidido que as obras para novas moradias começariam no máximo em três dias, o planejamento tinha de ser muito meticuloso pois espaço era algo complicado de se administrar naqueles tempos. E, enquanto as casas não ficavam prontas, os flagelados se tornariam agregados de muitas das famílias do retangular. À minha casa, foram apenas três, uma família. Minha casa era uma das menores do retangular X-Itali.
Logo após a tomada de decisões, todos foram hospedar as famílias desabrigadas. A que ficou conosco não demorou mais que dois dias, pois uma parte das famílias foi para uma antiga escola abandonada que serviria de abrigo. E, então, tive a privacidade do meu quarto de volta, pude pensar em tudo o que gostava de pensar. Não sei o que estava acontecendo comigo, pra falar a verdade. A imagem daquele garoto não me saía da cabeça, e enquanto pensava nele, o sono se afastava mais e mais. Varei uma noite com a imagem dele em toda parte do quarto, só cheguei a dormir pouco antes do amanhecer.
Androzza veio me perturbar o sono. Desde a chegada daquelas pessoas, ela não vinha me visitar. Era uma amiga querida, uma das poucas que não havia morrido ainda, andávamos sempre juntos. Ao chegar à minha casa, pouco depois do desjejum, trouxera-me notícias. Notícias de um garoto cujos olhos pareciam a imensidão do mar. Um garoto belo, dizia ela, que havia sido obrigado pelos próprios pais a deixá-los para trás e vir para a Zona-Europa. Dizia que ele estava triste, que chorava pela falta dos pais. Questionou-me se eu não queria ir conhecê-lo, e num impulso, peguei o bloquinho e escrevi “NÃO”. Um “não” impulsivo e categórico. Aquele garoto me deixava nervoso, mas não revelei a Androzza. Então ela voltou para casa, tinha que dar atenção aos hóspedes. “Principalmente a um deles, né?!”, pensei.
As semanas se arrastaram e as casas já estavam quase prontas. Androzza vivia com o garoto para cima e para baixo, mal tinha tempo para nós dois. E eu já o detestava. Muitas foram as vezes em que ela, em sua companhia, vinha me chamar, mas eu sempre recusava. Ele, parado há alguns metros, observava. Numa dessas, verifiquei a cor de seus olhos, e até mesmo de longe, dava para perceber as águas-marinhas tão ávidas. Mas a minha atitude era sempre a mesma, ficar longe. Vez ou outra, seguia-os, numa surdina, para observá-los. Aquele moleque lindo, cujos olhos eram duas águas-marinhas, tomara minha amiga de mim. Ele não merecia perdão.
Eu e Androzza passamos a ficar mais distantes. Nunca aceitava seus convites e, um belo dia, ela parou de me convidar. Estava cansada. Foi então que meu afastamento de Androzza me fez cair em culpa após saber de sua morte. Sua família morrera de contaminação biótica, por ingestão de comida contaminada. O garoto de olhos azuis foi salvo, ele ainda não tinha descido para comer com a família, e assim que o fez, deu-se conta daquelas pessoas que o acolhera agonizando à mesa de refeições. Nada pudera fazer, a não ser correr para pedir uma ajuda inútil, pois essas organelas eram geneticamente modificadas e avassaladoras. Havia a suspeita de que essas contaminações fossem elaboradas pela elite, temendo uma revolta popular global. Mas, quem haveria de fazer alguma coisa? Justiça não existia há muito.
Os corpos da família de Androzza foram levados para a fornalha fúnebre. O garoto estava terrivelmente cabisbaixo. A tristeza assolava-lhe o coração mais uma vez.  Eu não fui à cremação dos corpos e nem ele. Ao invés disso, fui para o rio que cortava o retangular. Fiquei atrelado à grade de proteção, observando a nuvem cinza que cobria o céu, pensando em como a humanidade sofria naqueles tempos. As lágrimas vinham conforme as lembranças de Androzza empurravam meus pensamentos de fuga e se punham a me torturar.
- Ela gosta muito de você. – disse alguém  se aproximando, enquanto estava parado frente à grade da encosta do rio. O clima era frio àquela tarde. Virei-me e me surpreendi em constatar quem era.
Ele estava lá, estático, à minha frente. Seus cabelos, tão lisos, dançavam com o vento enfraquecido pelas intempéries do clima. A pele alva emitia uma serenidade e uma calma enormes. E os olhos... Malditos olhos! Sempre tão malditos! Estava entregue e hipnotizado por aquelas águas marinhas invadindo minha cabeça sem pedir licença. E, inconscientemente, eu tentava achar palavras em algum lugar...
- Você fala diferente... – dei uma risadinha abafada, mas logo percebi a idiotice que escrevi.
Como todos os outros, ficou curioso pelo jeito de me comunicar e pela minha cicatriz. Percebi pela forma de me encarar. Mas, minhas barreiras contra aquele inimigo que me levou a amizade com Androzza foi esmagada como um inseto fedorento. Não pude resistir ao seu senso de humor e sua companhia agradável.  Conversamos a tarde toda –  eu com meu bloquinho e ele com seu sotaque estranho –, o começo da noite, e até mais, pois pedi para minha mãe deixá-lo ficar por lá por algum tempo. Ele dormiria no meu quarto, num colchão de lençóis velhos. E assim foi, ele não ficou apenas aquela noite, mas tantas e tantas outras. Minha família o adorara e acabamos por acolhê-lo. Sou o único homem dentre quatro filhos, e sentia falta de um irmão para conversar coisas de menino. Amizade era algo raro naqueles dias. Ele passou a ser meu alicerce para me sustentar quanto à ausência e à culpa que a imagem de Androzza me causava. Assim como eu fui o dele, consolando-o nas suas noites de profunda tristeza, quando a saudade de sua família biológica e a adotiva apertava-lhe o peito e exprimia-lhe lágrimas dos olhos.
Passamos a ser inteiramente amigos. Eu tinha apenas a sua companhia e ele tinha apenas a minha. Andávamos pelos arredores do retangular, como dois desbravadores, e como tais, descobrimos muitas coisas, como um esgoto abandonado que servia como casa de morcegos. Era num ponto alto e dava para ver a imensidão de quando o rio se fundia com o mar. Estávamos sempre inventando brincadeiras imbecis que nos recheavam as manhãs e as tardes. Eram momentos tão únicos e singulares, cada qual com suas emoções. Talvez, para ele, não significasse muito, mas para mim, eram tudo. Ele me bastava para me sentir menos só, menos deslocado e mais feliz. Eu o admirava em todos os aspectos. Nunca conheci alguém mais doce. Não havia uma noite sequer que eu não agradecesse a Deus por tê-lo enviado a mim.
Sua beleza me desconcertava e fazia-me sentir estranho em certas ocasiões, como quando ele saía do banho, ou trocava o macacão na minha frente. Talvez ele nem desconfiasse, julgo eu. Havia vezes que eu instituía certas brincadeiras ridículas, como quem encara quem por mais tempo, apenas para poder admirar-lhe os olhos com mais liberdade. E eu sempre ganhava, óbvio, pois não me cansava. Algum impulso estranho me fazia propor essas coisas malucas. Impulso esse que vinha daqueles azuis tão instigantes. Apesar de perceber sua inocência à distância, ele ainda exercia um certo mistério sobre mim. Quem sabe não fosse o corpo? Talvez a pele, o cheiro? O amor natural nunca morrera, mesmo com todo o sofrimento da humanidade diante de tantos séculos.
Porém, o que eu não sabia era que tinha mais alguém de olho na beleza daquele rapaz de pele alva e barba surgindo, tímida. Aqueles olhos, cujo paraíso estava escrito neles, chamaram a atenção de um top-ameba. O cara fedia a riqueza e poder. Era um designer de realidade holográfica, pelo que soube.
Estávamos voltando para casa, por uma antiga estrada de concreto, quando uma navterrea estacionou bem à nossa frente, deixando-nos assustados. A viseira fumê da cabine levantou-se e o cara desceu, com seu cheiro penetrante – um bom perfume, certamente – e fez uma proposta, que, indiscutivelmente, se estendeu apenas ao meu amigo. Ao ver que seria apenas a ele, recusou, mas eu fui insistente e escrevi no bloquinho que ele aceitaria, mostrando-o para o ameba. O homem ranzinza não gostou muito da minha ousadia em dirigir-lhe a palavra, mas eu estava ajudando-o a levar meu grande amigo para a Nova Terra. A proposta era para que fosse imagem primária dos novos projetos holográficos para entretenimento. Ele faria parte da elite, ele poderia ser feliz na terra-paraíso dos pentalionários. Ele viveria no Olimpo e seria um deus. Deus esse, que eu reverenciaria até o fim dos meus dias.
Convencê-lo foi bem difícil, o caminho inteiro fui mencionando tudo o que ele poderia ser, e iria se livrar do imenso sacrifício que era viver na Terra, e talvez, algum dia, voltar para procurar seus pais.
- E visitar os amigos, se sentir saudade. – Escrevi, tímido.
 Ao chegar e dar a noticia a mamãe e às minhas irmãs, todas ficaram muito felizes por ele. Mamãe fez até um bolo para comemorarmos! Mas eu sabia que ele estava triste. Desde a partida dolorida de sua terra-natal, até aqueles dias, sem notícia dos pais, nós fomos os que o acolheram, fora a família de Androzza, que jazia em paz.
O destino de sua partida era um laser que me castigava. À noite, ao banho, chorei como um condenado. Sentiria falta dele, muita falta. Já estava chorando a saudade daqueles olhos que me deram conforto por todo esse tempo. Deixei-o dormir e fui para o quartinho de ferramentas, tentar consertar um aparelho meio antigo que registrava imagens em 2d, precisava guardar alguma recordação.
 A noite engatinhou cansada para mim. Mamãe me acordou às 9 da matina, caído na mesa e em cima do aparelho. Graças a Deus eu tinha consertado. Iria tirar fotos de todos da família para que ele pudesse levar, mas tinha por ambição uma imagem dos seus olhos. Passamos a manhã nos divertindo com o tal aparelho antigo, mas ele estava bastante cabisbaixo. Notando isso, mamãe o falava das maravilhas que ouvira falar da Nova Terra, e seus sorrisos de resposta eram sem-graça.
Tiramos tantas fotos, mas sempre distantes. Nenhuma captava com exatidão o que eu queria ficar com o máximo de lembrança que pudesse. O próximo trabalho foi grafar as fotos, e foi um sacrifício achar um papel adequado e com qualidade suficiente para que durassem muito. Levou algum tempo para eu imprimir as fotografias para ele levar. Ele deve ter ficado feliz, pois seu semblante triste deu lugar a uma pitadinha de luz, num sorriso tímido. Mais tarde, ele arrumava a bolsa com certa morosidade, típico de alguém que faz a contragosto. Entrei no quarto e dei-lhe um sorriso, tentando passar conforto e satisfação. Sentei na cama e observei-o, sem nada dizer. Estava encabulado. Ainda não tinha tirado a foto que tanto desejara. Nunca tinha sentido um nervosismo tão grande para escrever alguma coisa. A mão tremia e as palavras voavam como pássaros assustados. Foi com muita falta de jeito que o disse – por alto – sobre a minha admiração por seus olhos. E pela primeira vez, ele me abraçou. Meu corpo parou naquele momento e demorou em responder-lhe o ato que sonhei durante tanto tempo, mesmo que inconscientemente. Enxugando os olhos, ele sorriu e se posicionou para que tirasse a imagem em 2d. Tive dificuldade, pois ainda tremia muito.
Sua viagem estava marcada para a noite. Ele seguiria com o top-ameba para o norte da Zona-Europa e de lá, embarcaria num avioespacial direto para a Nova Terra. Estávamos jantando e eu percebia a movimentação aérea pelas janelas do teto e pelos barulhos dos sonoros motores de alta geração. As luzes das naves já podiam ser vistas da janela da minha porta. Ao terminarmos, fomos todos o levar: eu, meu pai, minha mãe e minhas irmãs. Andamos muito até chegar ao audarrio do outro retangular. Lá havia uma pista apropriada para naves de tecnologia de ponta. Ao chegar, todo o local estava protegido por um campo eletromagnético.  O deixamos na ponta de entrada mesmo, já que não poderíamos entrar na zona franca, éramos apenas nascido-imundos. Eu segui o mais longe que pude com ele, e antes de dar adeus, ele me abraçou, novamente, engolindo-me o fôlego:
- Vem comigo. – sussurrou ao pé do meu ouvido.
Eu tremi e não consegui dar-lhe adeus. Ele ultrapassou a faixa mesclada e caminhou sem olhar para trás. A sensação do abraço sumia gradativamente, enquanto eu observava seus passos pesados. Virei-me, estático, e segui com minha família para a minha casa. Neguei todos os abraços de conforto que minha mãe quis me dar, queria ficar sozinho. Pedi para voltar e vê-lo partir para o céu. Ela tentou-me explicar que não daria para ver, mas ao perceber que eram meus olhos marejados que faziam tal pedido, consentiu. Alertou-me para ter cuidado, e seguiu para casa com papai e minhas irmãs. Cheguei o mais perto que a segurança permitia. Muitos motores terrestres seguiam para dentro e o círculo do campo de força ainda não havia se fechado, ele ainda estava ali dentro.
“Vem comigo” zunia nos meus ouvidos. Viveria, então, sem ele. Disso eu tinha quase certeza. Sim, porque o impulso me clamava para fazer algo. O mesmo impulso que me dava a certeza de que aquela amizade e a nossa convivência eram muito importantes para mim. O círculo começou a se fechar, para então, me separar dele definitivamente. Restava apenas uma pequena fresta, que ainda me cabia... Pulei. Pulei e cheguei a queimar o braço e meu sapato esquerdo. Segui à surdina, descalço, já que meus calçados não prestavam mais, a borracha estava derretida. Um pouco mais e ficaria manco.
Tentei correr sem ser visto e obtive sucesso. A essa altura, os radares de terreno já deveriam ter sido desligados, já que o campo de força estava totalmente fechado. Um alarme soou alto e assustador. O avistei indo, sozinho, colocar sua pequena bolsa no expresso que levaria-a para a nave. Toquei-lhe o ombro ao alcançá-lo e num instinto de pura felicidade, nos abraçamos. Algumas perguntas triviais, de praxe, numa situação como essa, e logo planejamos como eu iria. Iria junto à bagagem, escondí-me numa caixa que estava destrancada no expresso e lá fui eu.
Foi uma atitude impensada. Conforto-me, porém, em ter ciência de que foi pelo que sentia. Não havia tanto futuro naquela Terra, já abandonada pelos “donos do mundo”. A única coisa que me preenchia os dias era a amizade que o destino me presenteou. Desde muitos séculos atrás que a tristeza e a desesperança guiam a vida dos homens dessa era, mas para mim, havia um motivo por qual lutar e por isso eu estava espremido, no meio daquelas bagagens, iludido com a irreal possibilidade de viver na Nova Terra. Entretanto, fui pego na nave, pelo laser de descrição total. A ação foi rápida, os seguranças da tripulação eram bastante hábeis. E arrastado, me levaram até os superiores. Nunca vi um corredor mais longo. Levado á cabine secundária, fui tratado como um saco de lixo biótico; eles não tiveram a mínima piedade. Fui humilhado, abusado, xingado de tantos nomes que nem consigo contar. Meu amigo apercebera-se da gritaria e abriu a viseira da porta. Ele presenciou tudo. Pude ver o desespero com que esbofeteava a janelinha de acrílico. Tentei sorrir, mesmo com o rosto machucado, para passar-lhe uma confiança que eu não tinha. Aliás, poderia ter. No fundo, tinha esperança de que nos colocaríamos juntos, depois de tudo. Vejo como a ilusão é algo amenizador em momentos de sofrimento como esse. Mas não foi assim. No fundo mesmo, eu estava enganado.
Por mais que tivéssemos protestado, não houve conversa. Os seguranças me puseram um para-quedas, abriram uma porta pequena e me arrastaram até lá. Ambos estáticos, eu e ele. Eu, sendo arremessado para fora da nave em pleno vôo, a não sei quantos mil pés. Ele, tão impotente contra a bestialidade do sistema, que descartava da maneira mais vã qualquer coisa que não lhe servia. Ainda pude ver seus olhos, e ele estava chorando. Isso me doeu demais. A porta se fechou e ainda percebi uma risada maldosa no rosto de um dos carrascos, depois entendi o porquê.
Estávamos definitivamente separados. Ele iria para longe, e eu voltaria para casa, caso saísse vivo dessa. Tanto esforço para nada, ele estava partindo e eu nunca mais o veria. Ao pensar nisso, demorei a acionar as asas do para-quedas. Acionei. Acionei novamente. Acionei mais uma vez e continuei acionando, desesperado. O para-quedas estava quebrado e eu ganhava cada vez mais velocidade. Estava mergulhando para uma queda fatal, mas, incrivelmente, a calma chegou mansa, e eu respirei fundo a conformação. Pus-me a olhar ao redor. Acima das nuvens existia um outro plano, que era palco das histórias fantásticas que minha mãe me contava quando criança. Havia o sol à minha direita, irradiando vida, enquanto à minha extrema esquerda, um disco brilhante me brindava com uma luz prata que lembrei se chamar lua, e ao infinito, à minha frente, milhares de pontos de luz.
Mas havia algo mais interessante que tudo aquilo. A fotografia que havia tirado pouco antes da primeira despedida estava no meu bolso. Tirei e olhei. E fixado naquele pedaço de papel, mergulhei abaixo das nuvens com a visão da minha perdição. Naquele momento, aqueles olhos azuis se tornaram duas pedras preciosíssimas, cujo valor eu nunca poderia pagar.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Deixe-me contar uma história:

Alimentando cisnes



Havia um velho. Um velho ranzinza. Tinha lá seus sessenta e lá vai o trem. Perdera uma das pernas ao servir o exército na ditadura, e desposara uma moça logo depois – pressão dos pais – . Mas ele era apaixonado por um cadáver. João Pedro morrera anos antes, na flôr de uma juventude imberbe. Dezessete anos. Ambos eram amantes. Ambos se escondiam da sociedade infiel que dilacerava os mesmos meninos que, horas antes de se amarem, eles mesmos se punham a apontar os dedinhos. Seria a culpa que assolava-lhes os corações após atos tão abomináveis de amor? O certo é que, apesar de toda uma agressividade em tom de desespero até a última gota de honra que impregnava suas noites gatunas de prazer, ambos eram camaradas. Camaradas que se gostavam. Até demais.
João Pedro morrera aos dezessete, perto dos dezoito. Manuzeara de forma principiante a arma que tirara do criado-mudo do pai – tinha visto há uns dias o pai esconder embaixo de uma pilha de papéis – na surdina do sono da tarde que era habitual do seu velho pai. Dali para o estrondo que tirara sua vida, foram poucos minutos. Diante do cadáver de seu amado, Carlos não chorou. Segurou firme, como um homem de verdade o faria. Porém, ele deveria tê-lo feito, pois a imagem do seu amante infame não saíra de sua cabeça durante um bom tempo; ela parecia suplicar alguma coisa. Coisa essa que ele nunca deu ouvidos.
Logo depois de sua esposa morrer – ainda um tanto jovem e solitária, diga-se de passagem – ele passou a alimentar cisnes. Todos os dias caminhava alguns kilometros, desde sua casa até o parque onde, ao centro, se estendia um lago. Ao pôr-do-sol, a paisagem era linda, parecia até uma pintura, pensava. Tirava o saquinho de milho de um dos bolsos e punha-se a jogá-los aos punhados perto da água. O velho adorava ver os cisnes se aproximarem, famintos. Esse era o ritual diário de um velho ranzinza e manco que vivia atormentado por Tisífone.
Certo fim de tarde, não se deu conta do passar do tempo. Após o saquinho de milho esvaziar, o velho pegou no sono. Acordou tarde e o parque estava envolto da treva da noite. Não havia luar naquela noite fria. Mancando, devido à guerra que lhe carregara a perna esquerda, fora lenta e pacientemente tomando o caminho de casa. Mas o parque era grande. E à noite, perigoso. Não percebeu, por tanto, que um grupo se aproximara. Cercaram-no e pediram para esvaziar os bolsos. Mas, ao mirar bem para os rostos dos rapazes, num esforço para captar a luz que se esvaia de algum poste há poucos metros, seu olhar se estancou num certo moreno. Moreno esse cujos traços ele conhecia bem.
A gangue não era lá tão paciente, e o silêncio do velho, petrificado com a imagem de um dos rapazes à sua frente, não foi de grande ajuda. O espancaram. O espancaram como se não ouvesse vida nas suas carnes sofridas pelo tempo. Tornou-se um boneco nas mãos daqueles jovens brutos e crueis. Passando de mão em mão, toda vez que chegava às do tal moreno, ele implorava-lhe desculpas. Implorava-lhe que o perdoasse. Implorava-lhe que entendesse a sua honra de homem. E chegou até a implorar que o matasse. João Pedro voltara. Voltara para cobrar-lhe a dívida que tinha para com ele. Ele mentiu. E não só mentiu, também matou o grande amor de sua vida. Matou-o de forma traiçoeira, pelas costas.
Os banderneiros deixaram o velho agonizando num lugar às margens do lago. Enquanto o rapaz moreno, cujo semblante estava escrito as lembranças de João Pedro, caminhava junto aos outros, Joaquim dava, então, seus últimos suspiros. Os últimos instantes em que sua alma estava limpa, e sua dívida, paga. Seu amor por aquele rapaz atlético nunca morrera. Nas noites em que amava a esposa, era nele que Joaquim pensava. À morte da mulher que ele sugou a vida às migalhas, ele não chorou. Não chorou pela falta de amor que tinha para com ela, diferentemente do outro, que amara insanamente. Mas, naquele instante em que estava estendido na grama úmida dos arredores de um lago fedorento, o amor brotara da natureza selgavem que ali permeava... Os cisnes velaram sua morte lenta. Aos segundos que se arrastaram como uma presa abatida gritando pela vida, Joaquim chorara o que não havia chorado. Chorara pelo peso de um assassinato. Pela felididade de uma familia inteira que ele quebrou como um vidro inútil. Pela vida que jogou num esgoto sem fundo. Pelas lembranças de um amor. Pela covardia que o fez emburacar no primeiro boeiro que vira.
Três respirações antes de se entregar ao sono da morte, Joaquim deu-se conta de que João Pedro nunca morreu totalmente. Nunca conseguiria matá-lo para sempre.

domingo, 1 de janeiro de 2012

Hoje, apenas rezo para que eu não desvaneça.