Saí de casa com a mochila rasgada que fedia a mofo e pus os passos na calçada gasta, para assim, como fiz religiosamente todos os dias da minha vida, cortar o bairro até a fábrica em que trabalho.
Não estudei até o ensino médio.
Não tenho macarronada para o almoço.
Minha barba se projeta no meu rosto e há dez dias que tenho preguiça de tirar.
Cigarro? Sim, por favor!
Sabe aquela velha que observava pela janela quebrada da cobertura daquele prédio do meio, bem ali? Ela sempre faz isso.
Assisti a TV ontem até as nove da noite, porque depois a antena de metal vagabundo, feita por mim mesmo, não funcionou mais.
O galão de água acabou e esqueci de lavar a minha roupa extra. E de varrer meu quarto. Aliás, nunca varreram nem essas ruas. Não há sinalização também.
Só tive um amigo. Cuja morada era um prédio torto que ameaçava desabar, e cuja porta de entrada era menor do que minha canela.
Não há sol. Algumas nuvens talvez.
Esqueci de me olhar no espelho antes de sair de casa. Devo estar com olheiras e mais magro que o habitual.
Certa vez, vi pela janela úmida de um apartamento térreo que alguém concertava um carro muito antigo acabado. Um dos raros carros que vi na vida. Há pistas por aqui, utilizadas por pedestres.
O vento sempre sopra quente. E os riscos que dão vida ao rio são mortos pelas garrafas plásticas e dejetos.
Respiro o ar de poeira e fumaça. A fábrica não para. Trabalho 12 horas por dia. Recebo pouco. E o aluguel do quarto-e-sala é caro.
A vida de todos anda por um fio. As mães fazem o que podem. Não se sangra, apenas morre.
Não há tanto perigo na borracha como se pensa, mas os mistérios de uns poucos rabiscos são grandes demais. E eu vivo com medo. Todos e eu, pra ser sincero.
Nunca vou esquecer de quando saí para a única viagem que fiz. Na saída da cidade havia um letreiro, escrito: Bem-vindos à Californication. Ainda pude contemplar um pôr-do-sol num cartaz futurista.