sábado, 24 de setembro de 2011

Bem-vindos à Californication!


Não respirei o ar frio de toda rotina hoje.
Saí de casa com a mochila rasgada que fedia a mofo e pus os passos na calçada gasta, para assim, como fiz religiosamente todos os dias da minha vida, cortar o bairro até a fábrica em que trabalho.
Não estudei até o ensino médio.
Não tenho macarronada para o almoço.
Minha barba se projeta no meu rosto e há dez dias que tenho preguiça de tirar.
Cigarro? Sim, por favor!
Sabe aquela velha que observava pela janela quebrada da cobertura daquele prédio do meio, bem ali? Ela sempre faz isso.
Assisti a TV ontem até as nove da noite, porque depois a antena de metal vagabundo, feita por mim mesmo, não funcionou mais.
O galão de água acabou e esqueci de lavar a minha roupa extra. E de varrer meu quarto. Aliás, nunca varreram nem essas ruas. Não há sinalização também.
Só tive um amigo. Cuja morada era um prédio torto que ameaçava desabar, e cuja porta de entrada era menor do que minha canela.
Não há sol. Algumas nuvens talvez.
Esqueci de me olhar no espelho antes de sair de casa. Devo estar com olheiras e mais magro que o habitual.
Certa vez, vi pela janela úmida de um apartamento térreo que alguém concertava um carro muito antigo acabado. Um dos raros carros que vi na vida. Há pistas por aqui, utilizadas por pedestres.
O vento sempre sopra quente. E os riscos que dão vida ao rio são mortos pelas garrafas plásticas e dejetos.
Respiro o ar de poeira e fumaça. A fábrica não para. Trabalho 12 horas por dia. Recebo pouco. E o aluguel do quarto-e-sala é caro.
A vida de todos anda por um fio. As mães fazem o que podem. Não se sangra, apenas morre.
Não há tanto perigo na borracha como se pensa, mas os mistérios de uns poucos rabiscos são grandes demais. E eu vivo com medo. Todos e eu, pra ser sincero.
Nunca vou esquecer de quando saí para a única viagem que fiz. Na saída da cidade havia um letreiro, escrito: Bem-vindos à Californication. Ainda pude contemplar um pôr-do-sol num cartaz futurista.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Em Minhas Asas.


Quando o sol se ergue lá no horizonte no passo-a-passo, eu abro as asas.
As nuvens se pincelam do dourado da alvorada, enquanto eu recomeço o meu trabalho de dias a fio.
Ergo-me num vôo raso, elevo-me para cima e norteio-me para os tons de roxo do céu que acorda.
O ninho ainda não está pronto. Jaebé não veio. Talvez não venha mais.
Deixou-me as lembranças e o peso no coração, dificultando-me a planagem. Descer, pegar uma bolinha de barro, para depois subir tornou-se mais árduo agora.
De volta ao ninho - parcialmente destruído pela chuva da noite -, semeio o amor das minhas recordações no barro moldado por um bico frágil e solitário. Não há espaço para lágrimas, o trabalho me chama.
O orvalho invade-me as narinas. O cheiro me é familiar das outras manhãs em que meu coração estava brando e sorridente.
Elevo-me novamente aos céus, na esperança de terminar sozinho o trabalho de dois. Carrego nas asas a dor diária da saudade que Jaebé me deixou, ao olhar o dia acordar, e não ter seu canto aos meus ouvidos. O ninho volta a pedir-me o barro, e eu mergulho, novamente, em pleno ar.

Sim, senhor, senhor Destino

Ganho tapas nas faces pela prepotência que me faz parte, além de certa arrogância. Ele faz com que abaixe a crista e depois impõe: "Chama-me de senhor!"
- Sim, senhor, senhor Destino. - É o que eu respondo.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Joelhos ao Chão.




Hoje eu me distanciei do caminho de volta para casa. Chovia bastante e a estrada era de barro. Não deu outra, atolei os pés. Na rua estreita, de casas simples, havia pessoas queimando o lixo, havia pessoas ajeitando os telhados frágeis demais para aguentarem o peso do tempo e havia pessoas varrendo o chão da calçada em pleno temporal. Vi gente com a mão cansada estendida para o alto, pedindo comida. Vi gente doida que pensava que tinha mais de três metros.
As vielas eram às dezenas. Escuras, claras, de gente simples, que sorria para a vida que brotava das mãos sofridas e olhos cansados. Perguntei-me sobre um mapa, estava perdido. Dentre um labirinto, não pude dizer com certeza onde estava. Meus pés choraram sangue e a loucura sorriu pra mim, nuns dias escuros. Banhei-me na escuridão de uma noite sem lua e sem estrelas. Caí em agonia, num chão de espinhos, sem ao menos saber se era norte ou sul. “Ele nunca te deixará sozinho, planta os teus joelhos ao chão e implora”, uma senhorinha disse-me ao passar por uma rua e lembrei.
Rasguei o peito e me pus ao chão. Não havia mais casas, ou pessoas, ou ruas alagadas. Apenas vento forte e uma árvore que queimava em chamas celestiais, e era ela a força vital do meu coração no meio do meu jardim. Havia flores, sim, mas também havia muitas ervas daninhas. Senti que alguém enxugava minhas lágrimas e me estendia a mão. As perguntas se foram e me permiti sentir, como ser levado pela corrente de um rio tranqüilo. Eu conheci a Deus depois de muito andar. Eu conheci a Deus depois de tantas feridas sem respostas. Conheci a Deus enquanto as costas doíam. Eu conheci a Deus antes e depois de um suspiro doloroso. A luz finalmente sorriu para mim.