Andei por um tempo pelo leito do rio que corta a cidade. O diário de minhas reescritas estava na mão direita e meus passos estavam bem lentos. A margem era formada por pedras esbranquiçadas e o cheiro ali era forte. Via os carros passando na pista logo acima. Quando não avistei mais nenhuma alma passar apartir de um certo trecho, empurrei uma pedra até o mais perto da água. Sentei na rocha que fedia a peixe morto e tirei o elástico que selava o pequeno livro, abri e foleei até chegar nas primeiras páginas. Faltava coragem para começar, olhei para o céu, parecia pedir forças. Da primeira até a nona página, estavam escritas todas as coisas que eu sentia referente a Nicolas.
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Quando o vi pela primeira vez, sabia que algo tinha nascido dentro de mim. A imagem está na minha mente até hoje e creio que continuará pelos restos dos meus dias. Quando passamos a conversar, me encantei por aquele menino doce com uma masculinidade aflorada. Era muito inteligente e cheio de birra. "
Passei algumas folhas adiante, naquele diário estava todo o meu coração e logo um outro trecho me chamou a atenção:
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Eu me peguei pensando nele. Sei que até então, eu o via como amigo, mesmo ele dando em cima de mim. Confirmei o que sentia por uma foto sua que vi, ele usava um relógio no pulso e percebi que gostava daquela imagem, gostava da mensagem que aquele relógio me passou, que até hoje nunca consegui interpretar. Não sei o que me deu, mas comecei a gostar de Nicolas por causa de um relógio. Meio estranho isso. "
No decorrer dos parágrafos, vi de forma concreta a evolução de tudo isso. Vi que aos poucos, fui aprendendo a gostar de tudo o que o cercava, de tudo o que me remetia a ele. Olhei para a água que corria bem a minha frente e lembrei de uma das muitas músicas que ele me mandara, que aliás, foi a única de que gostei. Voltei a atenção às páginas do diário, não queria chegar tarde em casa.
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Ele realmente tem seus altos e baixos no comportamento, talvez seja algum problema psicológico. Mas, sinceramente, no fundo, no fundo, eu adoro isso. Certa vez ele me ignorou de um jeito que me deixou triste. O único medo que tenho é que ele tenha esse tipo de comportamento apenas comigo. Mas aí, paro para pensar direitinho: Ele, muitas vezes, tem a necessidade de conversar comigo. Então, se esses altos e baixos forem única e exclusivamente para comigo, isso deve significar algo de bom. "
Eram muitas entrelinhas que passei a ver com olhos de curiosidade. Muitas dúvidas supérfulas que, se eu tivesse mais dois pingos de maturidade, eu teria tomado outras decisões e todo esse desastre desnecessário nunca viria a acontecer. É incrível o que apenas uma escolha certa ou errada pode acarretar na vida de uma pessoa. O efeito borboleta existe, e havia acabado de comprovar pelas páginas redigidas por minhas próprias mãos.
A linha do "beco-sem-saída" foi posta quando soube de seu namorico com uma menina. Uma fulanazinha.
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Hoje eu fiquei sabendo do namoro de Nicolas. Sinceramente, eu não estou com tantos ciúmes quanto achei que teria diante de uma situação dessas. Muitas vezes ele me ligava, dizendo que iria sair. Em outras, parecia fazer questão de dizer que iria ficar com uma menina ou com um garoto. Às vezes penso que ele queria mesmo era me fazer ciúmes, mas logo foco meu pensamento em outro ponto. Passo a me dizer que ele só estava dizendo aquilo por dizer, não queria criar expectativas de maneira alguma. Às vezes penso que estou tranquilo assim porque não estou vendo as mãos dele correr pela cintura daquela piranha ou os lábios dele nos lábios de outra pessoa. Outrora penso que não gosto verdadeiramente dele. Mas, se não gosto, porque penso tanto nele, pulo de alegria quando me liga? Eu gosto até dos defeitos dele! Além de praticamente passar mal quando o vejo. "
A partir de então, comecei entender que passei a meio que sonhar acordado, imaginar certas coisas. Percebi que tinha começado de maneira sutil a forjar momentos que nunca vieram a acontecer na verdade. E talvez essa tinha sido a razão do meu caos.
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Hoje me peguei pensando muito em Nicolas. Lembrei do sorriso que ele me deu no dia em que nos conhecemos, do seu aperto de mão forte e seu jeito molecão. Me sinto culpado por não te dado brecha para as investidas que hoje, sumiram. Mas, olhando por um outro ângulo, eu gosto dele verdadeiramente, se eu tivesse dado brecha, eu seria apenas mais um, muito provavelmente. Me perguntei o dia todo o que ele estaria fazendo. Lembrei-me de um trecho de um filme que vi, em que dois garotos assistiam a um filme juntos e, nem bem o filme havia começado, eles se pegavam. Me imaginei com Nicolas naquela cena. Não na parte da pegação, e sim do companheirismo que foi retratado ali. Nossa. como eu desejo ter um momento desses com ele! "
Em outro trecho, relatei um dos muitos sonhos que tive:
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Depois da cena do filme ter ficado na minha cabeça, acordei nas núvens. Noite passada sonhei com algo parecido, nós estávamos jogando bola no que aparentava ser o quintal de um sítio. E dava para perceber claramente que ele estava adorando a minha presença..."
Depois daí, o beco já não tinha saída e estava cada vez mais adentrado sem perceber. Tive vários encontros com ele, e me dei conta de que me incomodava o fato de ele estar abraçado a outra pessoa e não a mim. Me controlava, sentia minha mão tremer, as batidas no meu peito ficavam muito fortes, o rosto ardia e a vontade de sair correndo dali era quase um impulso. Chegava em casa e chorava, implorando aos céus para desencravá-lo do meu peito. Tudo aquilo estava sendo muito doloroso e optei pelo caminho que me desse mais conforto, mesmo que fosse uma guloseima ilusória, que, mais tarde, me daria não só diabetes, mas acabaria comigo completamente.
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Hoje eu estava no ponto de ônibus, Nicolas me viu e parou para conversar um pouco comigo.
Ele só falava na maldita fulana. Ah quer saber? Queria que ela morresse. É, morresse. Talvez aí, quem sabe, ele não olhasse pra mim?! Depois que ele me disse adeus, imaginei aquilo tudo bem diferente: Primeiro ele chegaria e me diria "oi". Olharia nos meus olhos e ficaria sem fala durante uns 10 segundos. Começava a falar alguma bobagem e ia embora com as bochechas vermelhas. Quando eu estivesse no ônibus, meu celular iria dar o alerta de uma mensagem recebida: 'Adorei ver você!' Cheguei em casa e pensei na possibilidade do que eu imaginara a pouco, vir a acontecer. NENHUMA, foi o que enfiei na minha cabeça. "
O começo foi fácil. Tudo é como uma droga que vicia aos poucos. Tinha plena convicção que não deveria fazer isso, pois eu acabaria por me dar esperanças. Algumas páginas antes de começar realmente com esse vicío, vi que minha cabeça estava sendo, lentamente, tomada pela presença dele. Infelizmente, me deixei seduzir pela bruxa das ilusões, só assim me sentia (falsamente) completo. A maldita bruxa semeava as suas malditas sementes em meus sonhos, me dando um doses extremas e curtas o que eu não podia ter no meu dia-a-dia. Certo trecho me mostrou isso:
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Essa é a terceira vez essa semana que sonho com meu Nicolas. No sonho de hoje, nós estávamos felizes, num lugar que parecia um parque ou uma praça. Tinha um cachorro na cena que parecia ser nosso. Brincamos muito e nos beijamos ardentemente. Todas as pessoas que estavam alí sumiram, deixando aquele momento extremamente único. Voltamos a brincar com o cachorro e o sorriso que Nicolas exibia no rosto me dava uma imensa satisfação. Eu estava fazendo-o sorrir.
Logo que abrí os olhos, afundei o rosto no travesseiro, queria um pouco mais daquele momento que nunca teria com ele. "
A tarde estava quente. Tirei o casaco e pus-me a observar novamente o céu. A visão do azul e das núvens, ou até mesmo do negro infinito que a noite deixa escapar com seus milhares de pontos me dá uma sensação de paz e esperança, coisas que vim perdendo nos últimos tempos. Continuei a folear o diário e rever tudo o que vivi a pouco tempo.
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Hoje eu estava no ônibus e o vi passar por uma avenida. Fechei os olhos e reimaginei tudo, desde o clima até as roupas que ele usava. Ele estava sentado ao meu lado no ônibus, seus olhos estavam fixando a janela que mostrava a cidade serena e chuvosa e ele pegou minha mão discretamente e, para que ninguém percebesse nada, colocou sua bolsa em cima. Assim ficamos a viagem toda, trocando olhares vez ou outra e com nossas mãos entrelaçadas. Coloquei um fone em seu ouvido e o outro no meu, estava tocando uma música lenta e ele apenas sorriu pra mim, pareceu ter curtido a melodia. "
Não posso negar que isso era terrivelmente gostoso, reescrever tudo e viver tudo o que sempre sonhei com o meu amado Nicolas. No começo, vi apenas como uma brincadeira, mas eu ainda não tinha idéia de que a mente humana era algo que não se pode brincar, muito menos a sua própria. Acabei experimentando as sensações e os sentimentos de forma elevada, era uma forma surreal que mais parecia efeito de absinto.
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Hoje o Nicolas viajou, e me levou junto com ele, lógico. Chegamos à casa de praia com a família dele. Fomos guardar nossas coisas e, graças a Deus, ficamos no mesmo quarto. Trocamos de roupa, descemos e formos caminhar pela areia da praia. Haviam algumas pessoas que logo foram embora com o cair da tarde que já estava meio nublada. Eu e Nicolas éramos os donos da praia. Ambos estavamos de Camisa e calça pretas e chinelos. Ele carregava um frisbee embaixo do braço. Andamos um pouco e ele logo propôs de brincarmos com o frisbee. Foi legal, conversamos muito sobre muitas coisas enquanto brincávamos. Percebi que nós estávamos cada vez mais ligados. Resolvi aprontar: Peguei o frisbee e saí correndo para longe, ele entendeu o recado e correu atrás de mim. Como tem mais resistência que eu, logo me alcançou e pulou nas minhas costas e caímos no chão. Ele me prendeu com o seu corpo em cima do meu e nossos rostos ficaram colados. Nariz com nariz, testa com testa e... boca com boca. Foi o melhor beijo que ele me deu e nunca vou esquecer. "
Todo ser humano busca um amor de conto-de-fadas, mesmo que não admita. É da natureza humana buscar algo que remeta a si mesmo nas outras pessoas. Todos nós pertencentes à espécie buscamos a tal "metade da laranja", sonhamos de todas as formas com isso. Um amor idealizado, nascido da amizade e cumplicidade reacende a cada nova fase na vida das pessoas, mas de maneiras diferentes. Comigo foi do mesmo jeito. Sei que apenas queria me sentir pleno e saciado pelo amor que sentia por Nicolas, mas eu busquei a forma mais "fácil" para me sentir menos mal, esquecendo-me que, em muitas vezes, o barato sai caro, muito caro.
A linha do limite imposto para continuar tudo de forma madura, sensata e porque não dizer sem graça, foi quebrada. E com ela foi também um pouco da minha sanidade. Comecei a trocar tudo que vivia realmente por minhas verdades reescritas, reeditadas e egoístas. Eu passei a viver para esse romance que só ocorria nos meus sonhos, na minha imaginação e nas malditas folhas desse diário. Era isso que eu vivia, na minha mente, era apenas isso. Não existia mais ambiente familiar pra mim, nem escola e nem amigos. Tentava ficar o mais próximo que eu pudesse de Nicolas, e isso o estava atrapalhando...
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Hoje na escola, Nicolas e eu almoçamos juntos. Enquanto estávamos conversando, a vadia da Yasmin chegou para falar com ele. Vi que ele não gostou nada e ele disse para ela se afastar, ir embora, já que não tinha nada mais para discutir com ela. Continuamos comendo e ele me deu o sorriso que me conforta e me faz querer acordar a cada manhã. "
Estou rindo agora, rindo para não morrer de vergonha. Não foi absolutamente nada disso que aconteceu, eu lembro bem. Cheguei na escola e assisti todas as aulas como de costume, mas a cada dois segundos eu olhava para Nicolas. A turma já estava percebendo, e já estava bastante clara também a minha obseção por ele. A confirmação veio na hora do almoço: Enquanto colocava as porções de feijão e macarrão no prato, avistei Yasmin sentar perto do namorado. O ódio me subiu a cabeça, como aquela vadia tinha a coragem? Fui diretamente para a mesa que era feita apenas para duas pessoas e arrastei a cadeira vazia mais próxima até lá, me sentei bem no ângulo da mesa e desci meu prato até meu colo. Comecei a comer olhando para os dois, que me olhavam com uma mistura de desprezo, pena e nojo. As lágrimas escorriam pelo meu rosto enquanto tentava engolir. Mas eu não via isso, nada disso. Eu só enchergava o que a minha imaginação mandava, o que me confortava. Os dois tentavam entender aquilo, por mais que estivesse óbvio. Eu estava perdendo a cabeça. Lembrei de um outro trecho e procurei, olhando rapidamente os parágrafos. Esse trecho eu reescrevi assim que cheguei em casa:
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Hoje, a vadia da Yasmin morreu. Ela estava atravessando a calçada e um carro atingiu ela em cheio. Foi arremessada a dez metros de distância e teve morte instantânea. Eu sei que não deveria achar legal o que aconteceu, mas Nicolas se aproximou de mim e até agradeceu por eu estar com ele num momento tão difícil desse. Nós estamos cada vez mais próximos. "
Ver os dois, todos os dias juntos era minha dose de veneno diária. Eu os observava de longe e aquilo despertou a atenção da coordenadora que passeava pelo colégio durante os intervalos. Eu estava sempre sentado, escrevendo e escrevendo, olhando aqueles dois com olhos de ódio, tendo, várias vezes, lágrimas jorrando olhos a fora. Eu embarquei e me deixei embarcar nessa paranoia que me custou a dignidade como ser humano. Minha mãe foi chamada a diretoria e avisada. Nesse período, eu estava muito magro, já não tinha apetite e as minhas únicas atividades eram dormir e escrever. Cheguei a comprar caixas de sonífero para poder ter a chance de concretizar tudo o que eu escrevia de alguma forma. Estava ansioso por sentir o que eu idealizava. Queria colocar em prática o projeto.
Mas não era apenas nos sonhos que eu idealizava realizar as reescritas que marcavam o diário . A frustração fazia parte dos meus passos diários. Eu estava exigindo demais da realidade. Ela não podia me dar o que tanto eu queria e acabei indo tirar satisfações com quem não deveria. Enquanto mamãe conversava com professores, coordenadores e a bosta do caralho a quatro, estava esperando, encostado na parede, me chamarem para a conversa. Escutava as músicas que Nicolas gostava e vi os dois lá, abraçados em baixo de uma macieira que tinha no pátio do colégio. Corri até os dois gritando. Trincava os dentes e falava coisas sem nexo. Meus olhos vermelhos pulsavam no meu rosto e, enquanto Nicolas estava me batendo por ter agredido a garota, caí no chão. Estava tendo uma crise de convulsão, meu corpo não suportara.
A conversa com mamãe no leito do hospital foi longa, tentei mudar o foco da história e dizer que gostava da menina. Consultas com psicologos foram marcadas, mas o caso era sério, fui para a Doutora Ana Márcia, psiquiatra. Aos poucos fui me soltando e revelando a minha doença. Era compulsivo e o tratamento demoraria minha vida inteira. Pedi para que ela não contasse nada a mamãe. Até hoje, mamãe não toca no assunto e isso me diz que ela sabe de tudo. O que vim fazer no leito desse rio, era o que deveria ter feito a muito tempo, destruir os sonhos que um dia escrevi aqui. A Doutora me fez ver tudo o que acontecera de uma maneira diferente, mas ainda acho que seria mais feliz com tudo o que criei, se fosse verdade, claro. A vida, depois que perdemos o brilho que toda criança carrega nos olhos, se torna sem graça. A realidade nem sempre é boa, nem sempre nos satisfaz, mas é apenas o que temos. Até porque, quando morremos não levamos nem o nosso próprio corpo, não é mesmo? Hoje eu mudei de escola e de casa, moro praticamente do outro lado da cidade. Tenho um pequeno grupo de amigos que me ajuda a esquecer um pouco as cicatrizes que ainda existem. Pode-se dizer que tento levar a vida normalmente, já que é pra isso que continuo com a terapia. Bem, está ficando tarde e é hora de fazer o que vim fazer. Vou começar com as dez primeiras páginas.