Eu nasci guerreiro. Ou melhor, não nasci, mas sou. Isso muda
muita coisa. Digo isto porque minha integridade foi respeitada desde muito
infante. Sempre fui inteiro, nunca sobrei, nem faltei. Nunca usurpado ou
camuflado.
Lembro-me de minha
mãe a costurar minha armadura de pano e papel. Lembro-me da sua magia, ao
transferir todo o seu afeto do instinto protetor para o que eu usaria
eternamente. Assim pensava ela. Na verdade, penso que ela só quisesse preservar
a essência que me cabia inteira, nunca sobrando, nem faltando. Então, me fiz
poderoso desde criança. E carreguei aquela armadura como uma dádiva. Fui
soberbo, admito. Também fui arrogante e intolerante. Me mantive só. Pois é, ela
não previu o meu próprio envenenamento – Aliás, “veneno” é uma palavra forte em
demasia, implica morte. Prefiro intoxicação, acho mais adequado.
Porém, o que esteve em seus planos, fracamente, foi a minha
preservação. Deu certo – até certo ponto. Mantive-me íntegro à minha essência,
nunca usurpada ou camuflada. Mantive-me estranho ao resto dos outros.
Mantive-me livre do lixo e da poeira. A tal armadura era forte o suficiente.
Qualquer ferimento que, por ventura, aparecesse, era de única responsabilidade
minha. Ou seja, minha pele estava intacta. E, apesar de usar aquela coisa que
me prendia e me isolava da experiência da vida, eu estava livre. Nunca duvidei
de que sua maior preservação fora minha liberdade. Mas isso custou-lhe muito.
Houve pedras e injúrias quanto ao seu amor por sua cria. Contudo, ela nunca
esquecia de abrir a porta pouco antes do amanhecer. E assim, contemplava-me a
gozar de minha existência com paixão e alegria. Via-lhe o sorriso no rosto e
isso bastava, tanto para mim, quanto para ela. Mas eu cresci. De repente.
Tenho que dar-lhe a notícia. A aflição que me toma em abraço
já não consigo conter. Não quero ver-lhe o choro no rosto, nem a decepção. Mas
o mundo foi mais forte. Aliás, o mundo detém toda a força que existe. E ela é
apenas uma mulher. O mundo guerreou contra nós dois de forma injusta. Combateu
fogo com muito mais fogo. Com amor ela me vedou. E com amor eu me desfiz. Pura
covardia. O mundo não respeitou minha integridade. Ninguém, na verdade. Apenas
ela.
Talvez o tecido fosse fraco demais, ou o papel estivesse
muito envelhecido. O que posso afirmar é que a armadura não sobreviveu à queda.
O mundo é perspicaz demais, tudo aconteceu de dentro para fora. O amor brotou,
como uma coleira que me açoitava. O desrespeito iniciou-se a partir deste
maldita coleira. Não tive como fugir, e ela há de me perdoar. Bolei muitas
estratégias, mas todas muito falhas. O mundo é um cavaleiro impiedoso. Acabei
que fui acuado e colocado sem saída. O orgulho, então, falou mais alto. É para
ferir? Antes eu que o amor! Pulei. Não me perdoaria caso sentisse aquela mão
tenebrosa me empurrar. Porém, a armadura não suportou o baque.
Hoje eu sinto frio. Sei o que é a sujeira. Hoje eu apresento
cicatrizes por entre as migalhas que carrego no corpo do que já foi, um dia, a
prova da minha divindade. Hoje eu sou tratado com gargalhadas por onde passo.
Sim, porque, ainda insisto em carregar os fragmentos do maior presente que já
tive. Hoje eu preciso me modificar e me dobrar ao mundo. Hoje penso que este
mundo só pode ser mais bonito visto lá de cima, essa é a única explicação para
que eu caminhe aqui. Hoje eu só não sei como abraçá-la para pedir todo o perdão
que não mereço.