quarta-feira, 22 de setembro de 2010

O anjo e o agourento.


Ele demorou a subir toda a montanha. Já estava exausto quando chegou lá em cima. Vestido com roupas escuras, notava-se de longe quem era. Creio que ele tenha se impressionado com a vista do topo, respirou fundo e simplesmete sentou, chamando por mim em seus pensamentos. Estava observando-o desde que saira de sua casa. Perambulei pelos céus olhando-o e cuidando de sua segurança. Vi que passou por muitas coisas para chegar até o topo da tal montanha e me chamar. Ouvi suas lamúrias e seus "porquês" com uma certa atenção. Talvez eu não tivesse me dado conta do quão confusa era sua mentezinha mortal; do quão ele estava ligado a carne e a vida mundana, esquecendo-se do seu próprio corpo e do seu valor. Agora, ele tinha a plena conciência de que eu era o único que o via como era, que dava-lhe o devido valor; que se preocupava e o amava como nenhum outro amou. Não tenho certeza, mas sinto que caiu uma lágrima quando pensava nisso. Perambulei mais um pouco pelo céu, ouvindo-o me chamar. Queria ver até onde iria.
As estrelas já estavam surgindo lá em cima quando mergulhei abaixo das nuvens e desci devagar, pousando em pé, do seu lado.
- Por que demorou? - Indagou.
- Não posso vir sempre que seus caprichos pedirem. - Disse eu, com firmeza.
- Acha mesmo que isso é um capricho? - Retrucou.
Silêncio. Ficamos assim por um bom tempo, olhando o céu tornar-se negro com seus milhares de pontos brilhantes. Pensei em várias coisas com todo aquele silêncio, mas sinceramente, aquela situação era meio embaraçosa. Não sabia porque ele me chamara tanto; o porque de tamanha insistência e aquilo me afligia. Não ousei ouvir seus pensamentos dali em diante. Não sei, não me parecia honesto, apesar de estar ansioso para que abrisse a boca. Olhei-o de soslaio algumas vezes. Seu olhar firme no infinito, como se estivesse perdido ali, me deixava mais confuso. Foi-se o último raio de sol daquele dia, e eu ainda estava em pé e ele sentado ao meu lado.
- Você não vai sentar? - Perguntou, sem tirar o olhar das estrelas.
- Não se preocupe comigo. Para que me chamou? - Perguntei.
- Não o chamei. - Respondeu, com ar de assustado.
- Não me venha com criancices agora, sabes muito bem que se estou aqui é porque você gritou por mim.
- Talvez só esteja sentindo sua falta. - Disse, perdendo-se novamente no brilho dos astros.
- Não deveria sentir, não faço parte desse mundo.
- Mas faz parte de mim e isso me basta.
- Já está na hora de ir. Está tarde, pode ser perigoso para você voltar.
- Tenho você para me proteger.
- Não conte com isso.
Não esperei ele se manifestar, abri as asas e pulei do penhasco, subindo para o infinito logo em seguida. Acompanhei-o até chegar em casa, e velei seu sono em segredo. Sei que ele sentiu minha presença ali. Vi alguns de seus sonhos e antes do amanhecer fui embora. Vaguei pelos céus, indo do Cristo Redentor a Cordilhiera dos Andes, já não sabia mais em que pensar. Eu era um anjo, e já não era do mundo humano, então porque eu estava tão ligado a um mortal? Um mero mortal que fez parte do meu passado na terra e que hoje eu o guardo. Tenho a certeza de que os outros anjos não têm esse tipo de ligação com seus protegidos. A grande maioria deles nem sequer mostram as fuças... Conversei com Deus, sentado num precipício. Pés balançando e toda a imensidão do mar à minha frente. Perguntei o porque de tudo aquilo. O porque de só acontecer comigo; não tive uma resposta concreta, mas senti uma calma extraordinária, uma paz reconfortante.
Caminhei, então, por ruas, vendo as pessoas em suas vidas apressadas; vendo todo o aprendizado na vida destes probres infelizes. Sobrevoei uma escola e pousei no topo de um arranha-céu. Pus-me a observar todos aqueles carros, a vida que brotava em dados pontos da cidade. Ver aquela selva de pedra sendo contrastada pela luz doce do pôr-do-sol era imensamente prazeroso. Toda a atenção voltada para tudo aquilo e derrepente, uma voz me chamava. Rafael me chamava. No topo da montanha novamente. Desci e fiquei ao seu lado.
- Pensei que não viria hoje.
- Sempre que você chama eu venho, não venho?
- É.
- O que houve? - Perguntei, vendo sua cara levemente preocupada.
- O de sempre: Família. - Disse ele olhando pra mim.
No seu olhar, senti algo diferente. Algo como um pedido ou súplica.
- O que você quer? - Perguntei, tirando o olhar.
- Já leu meus pensamentos, porque então, pergunta?
- Não li, vi no seu olhar um pedido perdido. Anda, diga o que quer.
Olhou-me insistente e disse:
- Quero um abraço.
Confesso que fui pego de surpresa. Não imaginava que seria esse o tal pedido. Qual o motivo desse sentimentalismo? Não se mostrou assim na minha época terrena. Sabia que a luxúria imperava na sua vida, mas, porque aquilo agora? Um sentimento de esperança bateu em meu peito. Será que, com a minha partida brusca e repentina ele teria mudado? Se revisto? Eu não sabia. Não podia mais ouvir seus pensamentos. Me dei conta que só ouvia quando ele me chamava. Somente e apenas isso. Não teria como ter certeza. E talvez não quisesse me arriscar outra vez.
- Os anjos têm mágoa? - Disse, interrompendo meus desvaneios.
- Você não pode me tocar, sou feito de luz. E a luz não pode ser tocada.
Abri bem as asas e mostrei-o o quão grandioso era meu brilho. Nem o sol conseguiu osfuscar. Mostrei-me inteiramente como era e olhei para ele. Ele estava olhando a paisagem a sua frente. Algo me disse naquele momento ele sentia uma imensa falta minha e me olhar daquela forma o deixara triste. Ver que eu já não fazia parte daquele meio e que não poderia ter o que sempre teve e não deu atenção devida. Talvez ele realmente desejasse me ter ali  perto. Talvez ele tivesse aprendido e visto o que era importante, afinal. Talvez eu pudesse até voltar. Isso, voltar e refazer o que nunca foi feito. Mas, eu não poderia continuar ali...
- Tem que ir agora. A noite está caindo.
- Sempre vai embora assim, do nada. Porque? Acaso não queria estar aqui?
- Se eu não quisesse, não estaria. Agora vá. Vá. Vá. Já vai escurecer.
Novamente levantei voo. Nunca soube ao certo porque não o encarava de frente. Sempre ia embora antes de responder a certas perguntas e nunca me questionei. Só sei que não conseguiria responder. Resolvi andar às margens do Nilo para pensar. Em certo ponto, agachei-me e comecei a olhar o circuito das águas. Rafael não me saía da cabeça e e já estava ficando preocupado. Seria normal um anjo sentir isso? Teimava em não aceitar tudo aquilo, mas já era tarde. Certamente que ele não era mais o mesmo de alguma época atrás. Não era mais o mesmo garoto que me magoou enquanto eu vivia na Terra. Algum sentimento ele continuou nutrindo, mesmo depois de minha partida. Saudade talvez. Mas era mais forte que isso, mais visível que isso. Não o via em más companhias e estava saindo menos. Estava se envolvendo mais com as pessoas em si, e não só com seus corpos. Sem me dar conta, permiti que o sentimento de amor e apego humanos invadissem aos poucos. Quando me dei conta, já estava novamente afeiçoado a Rafael. Confuso.
Novamente fui a Cordilheira dos Andes para conversar com Deus. Sentei-me no mesmo precipicio de sempre e olhei para os céus, fechei os olhos. Disse a Deus tudo o que sentia, tudo o que estava se passando, chorei. Analisei com ele os prós e os contras, tentei esvaziar tudo o que estava na minha cabeça. Deitei-me no chão de terra vermelha e observei o sol. Arrisquei para encontrar a paz num grito silencioso, quando senti uma presença gloriosa, era Castiel e queria falar comigo.
- Você tem uma escolha importante a fazer e precisa pensar muito bem antes de escolher. Você nutre um sentimento que não é para um anjo...
- Eu sei, mas não tenho culpa...
- Calma, eu não disse que tinha. Você tem um laço com esse garoto que não conseguirá quebrá-lo. Foi-lhe dado o direito de voltar pelo tempo necessário para que tudo se resolva. Serás feito do barro daqui e serás desfeito quando quiseres.
- Mas...
- Assim o Senhor dos senhores quer e assim será. Agora fique aqui, você não deve voltar. Durma, descanse porque sua jornada vai ser longa.
Dito isso, sumiu no espaço, como quem se desintegra. Fiquei atordoado com aquele aviso. Não imaginaria que seria dado a mim essa prerrogativa. Nunca tinha ouvido falar disso entre os anjos e eu já nem sabia o que pensar. Dúvidas brotando a todo momento e o medo chegou logo. Sentei-me numa pedra e baixei a cabeça com as mãos nos cabelos. O que seria de mim dali em diante? O que eu iria fazer quando voltasse? A quem iria procurar? Como saber o que fazer? Onde seria o caminho? Socorro. Chorei em prantos e novamente louvei ao Rei dos reis. Aos poucos me acalmei e acabei adormecendo por ali mesmo. Acordei com o orvalho da manhã e uma brisa no rosto. Percebi que estava numa estrada, tinha carros e barulho e eu estava sujo. A poeira que os carros levantavam irritou o meu nariz e espirrei. Assustei-me comigo mesmo, pus-me a me tocar e não acreditei: Tinha carne e osso por toda a minha luz. Onde estão minhas asas? Passei a caminhar seguindo as placas e logo cheguei a Recife. Meu pés estavam me matando. Tive que andar muito até a casa de Rafael. Quando finalmente cheguei, sua mãe disse-me que ele não estava. Fui procurá-lo. Tentei lembrar-me dos lugares que costumava ir. Passei por uma praça, alguns bares e a faculdade. Nada de encontrá-lo. Até que, num dado cruzamento, o avistei de longe. Tive a certeza de que era ele e passei a segui-lo. Numa esquina, quase o perdi, mas vi que tinha entrado em um certo estabelecimento e fui até lá. Exigiram dinheiro para que pudesse entrar, e como não tinha esperei lá fora. Passadas algumas horas, ele saiu alvoroçado, acompanhado de quatro rapazes bem-afeiçoados. Altos, fortes e bonitos. Decidi não levantar de onde estava. O coração que fora me dado a pouco, começou a bater forte ao ver aquela cena. Os cinco entraram num beco escuro. Já era altas da madrugada e estavam certos de que ninguém os incomodaria. Acabei por observar tudo aquilo de longe e por mais que aquilo doesse mais do que ser atravessado por uma lâmina, não saí dali. Não tinha forças para mais nada além de testemunhar aquela cena. Tudo terminado, se ajeitaram como puderam e foram embora. Rafael foi o último a sair e me viu assim que pisou no asfalto. Sorriu, mas logo percebeu que algo estava estranho. Me viu chorando, sujo e sem minhas asas. Com os pés machucados. Parecia atônito e com certeza entendeu tudo. Gritou meu nome, mas saí correndo dali, acabei sentando num banco de uma parada de ônibus e chorei. Nunca tinha chorado daquele jeito em vida. A dor que no meu peito explodia a cada segundo, ao lembrar de tudo e principalmente depois de tudo o que fiz para poder voltar, parecia inundar meu corpo.
Começou a chover forte e aquilo me fez lembrar as palavras de Castiel: "Serás feito do barro daqui e serás desfeito quando quiseres.". Entrei na pista , meus pés inchados e machucados estavam explodindo de dor. Caminhei até a faixa branca que dividia as duas mãos. Pessoas nos carros me olhavam com indiferença e as lágrimas caíam sem nenhum impecílio. Abri os braços e clamei ao Senhor. Clamei, clamei e clamei. Levantei o olhar para o altíssimo e louvei. Pedi com toda a força que tinha o meu espírito naquele momento, supliquei a Deus para que a dor que afligia todo o meu ser fosse levada pela a água da chuva. Supliquei também que o barro que me fora dado para retornar, fluísse com as gotas que caíam do céu. Implorei, mostrando o quanto eu estava machucado e o quanto eu necessitava do Senhor ali, naquele momento. Roguei com toda a potência da minha voz, e aos poucos, senti-me derreter. O barro estava escorrendo por cada parte de mim, eu estava sendo desfeito. O boneco que havia me tornado por amor, estava indo embora com a água, manchando o azul-escuro do asfalto com o vermelho da lama. Todo o momento com os olhos fechados, senti a presença de Deus ao meu redor e a tranquilidade que seu conforto me trazia me fez apenas permanecer com os olhos fechados e simplesmente sentir e confiar em tudo o que estava sendo feito por mim ali. Aos poucos, frestas de luz do meu verdadeiro eu foram brotando da lama que escorria até os boeiros próximos. Cada vez mais fui me sentindo liberto e em pouco tempo pude abrir minhas asas como nunca fiz antes, era a mais pura e genuína sensação de liberdade que já experimentei. Levantei voo assim que a última gota da lama escorreu de uma de minhas penas. Voei para em longe dali e fui agradecer ao Pai por ter me libertado. Subi acima das núvens e vi o céu inteiramente azul-anil. Permiti que o brilho do sol iluminasse tudo o que eu era. A paz voltara.
Castiel veio falar comigo depois de eu ter aproveitado toda a sensação de liberdade. Disse-me que deveria voltar a companhia de Rafael. Guardá-lo como antes fazia e que a decisão de mostrar-me a ele seria totalmente minha. Voltei. Apartir dali, vijiava-o como deveria ser e me contentava em ser o anjo-guardião dele. Nunca mais dei ouvidos às suas súplicas para conversar comigo. Ele subia todos os dias a montanha para esperar que eu aparecesse novamente. Nunca permiti que ele se sentisse culpado por o que acontecera. Sempre que a culpa caía sobre seus pensamentos, soprava-lhe boas palavras em seus ouvidos e ele acabava por acalmar-se. Hoje me sinto feliz, feliz por ter a certeza de que sou capaz de amar inteiramente. Feliz por ser um anjo e ser útil. Apenas a paz reinando em mim me basta hoje.

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