Naquele dia eu arrumei as malas com o choro de quem está prestes a ir à forca. O casarão estava vazio e o menino Ícaro já fora para a casa dos tios de Londres. Ao ver pela útima vez o lugar onde servi, não pude evitar que a culpa caísse sobre meus ombros de novo. Como não me culpar por toda a ruína da família que sempre cuidei com amor e carinho? Como não me sentir negligente por ter ficado calada diante de toda a barbaridade cometida, de certa forma, às minhas fuças? Como não me colocar no lugar do pobre menino Ícaro, que sofreu calado toda a violência? Espero que um dia, eles possam me perdoar.
Tinha terminado de trançar o cabelo, me deu cede e fui até a cozinha beber água. Lavei o copo e guardei-o. Lá da cozinha, vi que uma janela da porta da sala estava aberta, atravessei o cômodo e fui fechá-la. Empurrei a trinca quando ouvi algo estranho para uma noite comum, um grito abafado vindo do andar de cima, e pela proximidade, esses ruidos deveriam vir do quarto do menino Ícaro. Subi as escadas com uma certa pressa, mas sem fazer muito barulho. À passos lentos cheguei próximo a porta do quarto e não ousei abrir. Percebi que o menino parara de gritar e voltei ao meu quartinho, nos fundos da casa. Demorei a pegar no sono, minha mente me atormentou com questionamentos e não me saia da cabeças seus gemidos abafados. O que seria?
Levantei às cinco e meia da manhã como de costume, abri todas as janelas da casa e as portas principais, coloquei água pra ferver e fui cuidar dos outros afazeres da rotina matinal. Pouco à pouco as pessoas da casa foram acordando, primeiro desceu a irmã de seu João Manoel, depois seu marido, seguido por dona Maria Antônia. Seu João Manoel foi um dos últimos a descer, e ao ver que o menino Ícaro não tinha descido ainda, mandou-me ir acordá-lo. Abri a porta e o vi sentado na cama, ainda com o pijama. Seu olhar petrificado na parede me assustou e tentei buscar sua atenção pigarreando, mas ele apenas cerrou os pulsos, afundando-os no colchão. Abri as cortinas e quando a luz da manhã adentrou no quarto, ele olhou pra mim e disse que jantaria na cama. Prontamente desci e comuniquei aos senhores. Uma breve discussão entre eles e decidiram por deixar o menino comer no quarto mesmo. Preparei seu café-da-manhã e levei até ele, deixando a mesinha em cima da cama. "Feche a porta quando sair." foi a única coisa que disse. Percebi que algo estava estranho com o menino alegre que levantava com um sorriso de lado a lado do rosto, mas nada disse, sempre me mantive no meu devido lugar e até mesmo pela educação rígida que recebi durante a minh infância, nunca iria me manifestar nos assuntos dos patrões.
Durante toda a estadia dos tios, o garoto permanceu num estado anormal: Mal deixava o quarto, e quando saía, era para algo muito essencial, como ir ao banheiro ou comer alguma coisa. A mãe estranhou esse comprotamento e teve uma conversa com o menino, deixando o assunto para lá após seu João Manoel explicar-lhe que era apenas uma fase de criança e logo iria passar. Eu observava de longe o que acontecia, apenas observava, calada e subjugada. Notei que, apartir do momento em que os tios voltaram para Santos, Ícaro passou a sair mais do quarto, mas continuava muito estranho. Andava pela casa arrastando um cobertor que adorava quando era criança, dado que ele já tinha oito anos e o cobertor estava velho, sujo, rasgado e com um cheiro de mofo dos diabos. Ficava pelos cantos e passeava pela casa calado, com o semblante incógnito que me dava arrepios, o menino mais parecia uma assombração. Várias foram as vezes que me assustei enquanto fazia algum afazer e ele passava por mim com seus passos curtos e demorados, como se estivesse a se arrastar. O garoto não estava bem.
Três meses após a visita dos tios, chegara uma carta, comunicando uma volta, eram as férias de verão. Sabendo da notícia, Ícaro simplesmente tracou-se no quarto e se enfiou embaixo das cobertas. Seus pais não perceberam isso, mas eu sim. Empurrei a porta com o cotovelo, deixei o lanche da tarde em cima do criado-mudo e sentei-me ao seu lado, dando-me uma liberdade espontânea que nunca tive. Passei a mão em sua cabeça pelo cobertor e o perguntei o que estava acontecendo. "Nada.", limitou-se a isso.
Na segunda noite da volta da irmã e o cunhado de seu João Manoel, fui até a cozinha novamente, só para me certificar de algo que nem sabia o que era. Mesmo com a casa dormindo, resolvi tomar água como desculpa. Tudo ok, adentrei na sala e de lá ouvi novamente os mesmos sons da outra noite, subi as escadas e a porta do quarto do menino estava entre-aberta, apenas uma fresta. Aproximei da porta à passos cuidadosos. Olhei e direcionei a visão para o garoto. Sinceramente, demorei a entender o que se passava, mas, era aquilo mesmo. Olhei mais duas vezes e soltei um "Ah!". Fui ouvida. Desci o mais rápido que pude, tranquei a porta do quarto e impurrei o guarda-roupa para me sentir mais segura.
A rotina recomeçava como sempre e, apesar de todo o cansaço pela noite não durmida, tentei não chamar maiores atenções. Todos desceram e tive que levar o café do menino Ícaro para o quarto. Na volta, baixei a cabeça quando vi o José Carlos subindo. Me pegou pelo braço, "Acho bom você permanecer calada!". Entrei num pânico silencioso, eu que sempre fui submissa, tive um medo terrível do que pudesse acontecer comigo e até mesmo com o pobre garoto. O dia correu sem maiores complicações, exceto toda a tensão vivida por mim e por Ícaro que passava despercebida aos demais. No meio da tarde, fui ao quarto do menino e encontrei, dobradinho em baixo do travesseiro um lençol com uma mancha de sangue. Levei a mão à boca e olhei pela janela e o vi brincar no jardim. Seu José estava se aproximando quando por puro instinto maternal, o chamei. Quando apareceu na porta, sua expressão era de gratidão e eu apenas sorri.
A minha angústia aumentava a cada passo que eu via o menino Ícaro. Imaginar o que passava sem ter forças para esbravejar era atormentador. Passei a chorar as noites a dentro antes de dormir. Tentei me aproximar do garoto, mas ele se fechou completamente. Via o terror nos seus olhos quando olhava para o tio e a expressão escancarada de alívio toda vez que aquelas visitas indesejadas iam embora. Essa situação se repetia desde que chegavam as malditas cartas de aviso até os cumprimentos de adeus. Eu tentava salvar o menino de todas as formas que podia, mas não podia muito, pelo menos não o bastante. A assombrozidade da história vivida por um garoto de apenas oito anos se arrastou por um tempo. Alguns anos. E me levou junto. A passividade corroía minha alma e acabou com quem eu era. Mas, eu era apenas a empregada.
No dia vinte de agosto de 1937, dona Maria Antônia achou o pijama do menino enrolado no fundo do guarda-roupas. Tinha manchas de sangue na parte de trás. Ela prontamente me chamou e num tom de quase descontrole perguntou-me o que significava aquilo. "Não sei.". Foi o que disse, "Não sei.". Queria ter forças para falar tudo, dizer e gritar o que vinha acontecendo, mas diabos, eu era apenas a empregada. A aconselhei para conversar com seu filho e o examinar como mãe. No começo da noite, quando o menino chegara da escola, ela exigiu dar banho nele e, sob todos os protestos, entrou no banheiro e fechou a porta. Tentei ficar o mais perto possível, me sentia instigada a ficar próximo. Sei que ela tentou ser cuidadosa, mas a dor de ter o filho violado era maior do que ela podia suportar. Ao ouvir os berros de Ícaro e os gritos da mãe, seu João Manoel abriu a porta e perguntou o que se passava. Ele sem saber, tinha invadido o instinto de uma mãe e, como uma verdadeira leoa, o expulsou de lá e trancou a porta com chave. De duas coisas eu soube naquela hora: Ela estava disposta a tudo para cuidar do filho e Seu João era o suspeito que estava no seu alvo. Aquela noite seria longa demais pra mim.
Quando o filho não quis contar o que tinha acontecido, mandou-o se trancar no quarto e só sair quando ela mandasse. Me mandou fazer o mesmo, e quando eu quis argumentar, me pegou pelo braço e me arrastou até o quartinho dos fundos, me trancando pelo lado de fora. Tentou não chamar a atenção do marido, que dormia na cama. Entrou em seu quarto e pegou a arma do esposo que ficava escondida atrás do criado mudo, acordou-o com uma tapa na cara. "O que você fez ao Ícaro?". "...Hm, o quê?". "Responda!". Nesse momento, entraram no quarto a irmã do seu João e seu marido. Dona Maria estava fora de si. Seus gritos eu ouvia lá do quartinho e isso me deixava louca. Maldita passividade, como eu era fraca! Com a arma apontada para o marido, que tentava entender o que estava acontecendo, só fazia a mesma pergunta: "O que você fez ao Ícaro?". Seu José parecia estar num sonho, custou a entender tudo. Em meio aos protestos da irmã e do cunhado do seu josé, o menino Ícaro surge, e ao ver a arma apontada para o pai que estava deitado: " Mãe, nãããooo!". O barulho do disparo me estrondou inteira, meu corpo não aguentou tamanha pressão e eu desmaiei. Ícaro estava agarrado as pernas da mãe, contando o que acontecera. A mulher com os olhos marejados com lágrimas de ódio fitaram seu José, que saiu correndo. Chegou até a porta da cozinha, e como estava trancada, se viu encurralado. Encolheu-se entre a pia e a dispensa, pedindo pelo amor de Deus. Ela posicionou a arma em direção a sua cabeça e mandou que a olhasse. O infeliz levantou a cabeça devagar e olhou a figura da mulher de camisola branca com arma em punho. Implorou novamente e ela o calou, rogando aos céus que a perdoasse e mostrou-lhe o que a sua atitude montruosa acarretara. Ela matara o marido; e o filho certamente iria ficar com muitas sequelas daquilo tudo, seria presa em poucas horas e nada no mundo iria impedí-la de matar o causador de sua dor. Outro estrondo ecoou e a polícia chegou rápido, alertada pelos visinhos.
Hoje, estou com sessenta e oito anos e sou cuidada por uma filha. Sonho em, antes de morrer, encontrar o menino Ícaro e pedir-lhe perdão por minha negligência e passividade diante de tamanha atrocidade. Perguntar-lhe se poderia, sinceramente, perdoar uma velha que passou a vida inteira com o peso da culpa nas costas, se martirizando por não ter dito nada. Pedir-lhe perdão também pela ruína de sua mãe e de sua família. Não sei se vou encontrá-lo ou, se isso acontecer, ele poderá me perdoar, mas eu tenho que tentar, tenho que, pelo menos, amançar a dor que só se consiste a cada dia. Queria poder morrer com uma pontinha de paz que nunca tive. Queria poder voltar no tempo, daria minha vida se fosse preciso. Olho a foto que roubei da casa antes de ir embora. Olho para aquela família feliz estampada num pedaço de papel como punição pela minha falta de atitude. A destruição daquele âmbito familiar foi culpa minha. Tudo por eu ser apenas a empregada.
Durante toda a estadia dos tios, o garoto permanceu num estado anormal: Mal deixava o quarto, e quando saía, era para algo muito essencial, como ir ao banheiro ou comer alguma coisa. A mãe estranhou esse comprotamento e teve uma conversa com o menino, deixando o assunto para lá após seu João Manoel explicar-lhe que era apenas uma fase de criança e logo iria passar. Eu observava de longe o que acontecia, apenas observava, calada e subjugada. Notei que, apartir do momento em que os tios voltaram para Santos, Ícaro passou a sair mais do quarto, mas continuava muito estranho. Andava pela casa arrastando um cobertor que adorava quando era criança, dado que ele já tinha oito anos e o cobertor estava velho, sujo, rasgado e com um cheiro de mofo dos diabos. Ficava pelos cantos e passeava pela casa calado, com o semblante incógnito que me dava arrepios, o menino mais parecia uma assombração. Várias foram as vezes que me assustei enquanto fazia algum afazer e ele passava por mim com seus passos curtos e demorados, como se estivesse a se arrastar. O garoto não estava bem.
Três meses após a visita dos tios, chegara uma carta, comunicando uma volta, eram as férias de verão. Sabendo da notícia, Ícaro simplesmente tracou-se no quarto e se enfiou embaixo das cobertas. Seus pais não perceberam isso, mas eu sim. Empurrei a porta com o cotovelo, deixei o lanche da tarde em cima do criado-mudo e sentei-me ao seu lado, dando-me uma liberdade espontânea que nunca tive. Passei a mão em sua cabeça pelo cobertor e o perguntei o que estava acontecendo. "Nada.", limitou-se a isso.
Na segunda noite da volta da irmã e o cunhado de seu João Manoel, fui até a cozinha novamente, só para me certificar de algo que nem sabia o que era. Mesmo com a casa dormindo, resolvi tomar água como desculpa. Tudo ok, adentrei na sala e de lá ouvi novamente os mesmos sons da outra noite, subi as escadas e a porta do quarto do menino estava entre-aberta, apenas uma fresta. Aproximei da porta à passos cuidadosos. Olhei e direcionei a visão para o garoto. Sinceramente, demorei a entender o que se passava, mas, era aquilo mesmo. Olhei mais duas vezes e soltei um "Ah!". Fui ouvida. Desci o mais rápido que pude, tranquei a porta do quarto e impurrei o guarda-roupa para me sentir mais segura.
A rotina recomeçava como sempre e, apesar de todo o cansaço pela noite não durmida, tentei não chamar maiores atenções. Todos desceram e tive que levar o café do menino Ícaro para o quarto. Na volta, baixei a cabeça quando vi o José Carlos subindo. Me pegou pelo braço, "Acho bom você permanecer calada!". Entrei num pânico silencioso, eu que sempre fui submissa, tive um medo terrível do que pudesse acontecer comigo e até mesmo com o pobre garoto. O dia correu sem maiores complicações, exceto toda a tensão vivida por mim e por Ícaro que passava despercebida aos demais. No meio da tarde, fui ao quarto do menino e encontrei, dobradinho em baixo do travesseiro um lençol com uma mancha de sangue. Levei a mão à boca e olhei pela janela e o vi brincar no jardim. Seu José estava se aproximando quando por puro instinto maternal, o chamei. Quando apareceu na porta, sua expressão era de gratidão e eu apenas sorri.
A minha angústia aumentava a cada passo que eu via o menino Ícaro. Imaginar o que passava sem ter forças para esbravejar era atormentador. Passei a chorar as noites a dentro antes de dormir. Tentei me aproximar do garoto, mas ele se fechou completamente. Via o terror nos seus olhos quando olhava para o tio e a expressão escancarada de alívio toda vez que aquelas visitas indesejadas iam embora. Essa situação se repetia desde que chegavam as malditas cartas de aviso até os cumprimentos de adeus. Eu tentava salvar o menino de todas as formas que podia, mas não podia muito, pelo menos não o bastante. A assombrozidade da história vivida por um garoto de apenas oito anos se arrastou por um tempo. Alguns anos. E me levou junto. A passividade corroía minha alma e acabou com quem eu era. Mas, eu era apenas a empregada.
No dia vinte de agosto de 1937, dona Maria Antônia achou o pijama do menino enrolado no fundo do guarda-roupas. Tinha manchas de sangue na parte de trás. Ela prontamente me chamou e num tom de quase descontrole perguntou-me o que significava aquilo. "Não sei.". Foi o que disse, "Não sei.". Queria ter forças para falar tudo, dizer e gritar o que vinha acontecendo, mas diabos, eu era apenas a empregada. A aconselhei para conversar com seu filho e o examinar como mãe. No começo da noite, quando o menino chegara da escola, ela exigiu dar banho nele e, sob todos os protestos, entrou no banheiro e fechou a porta. Tentei ficar o mais perto possível, me sentia instigada a ficar próximo. Sei que ela tentou ser cuidadosa, mas a dor de ter o filho violado era maior do que ela podia suportar. Ao ouvir os berros de Ícaro e os gritos da mãe, seu João Manoel abriu a porta e perguntou o que se passava. Ele sem saber, tinha invadido o instinto de uma mãe e, como uma verdadeira leoa, o expulsou de lá e trancou a porta com chave. De duas coisas eu soube naquela hora: Ela estava disposta a tudo para cuidar do filho e Seu João era o suspeito que estava no seu alvo. Aquela noite seria longa demais pra mim.
Quando o filho não quis contar o que tinha acontecido, mandou-o se trancar no quarto e só sair quando ela mandasse. Me mandou fazer o mesmo, e quando eu quis argumentar, me pegou pelo braço e me arrastou até o quartinho dos fundos, me trancando pelo lado de fora. Tentou não chamar a atenção do marido, que dormia na cama. Entrou em seu quarto e pegou a arma do esposo que ficava escondida atrás do criado mudo, acordou-o com uma tapa na cara. "O que você fez ao Ícaro?". "...Hm, o quê?". "Responda!". Nesse momento, entraram no quarto a irmã do seu João e seu marido. Dona Maria estava fora de si. Seus gritos eu ouvia lá do quartinho e isso me deixava louca. Maldita passividade, como eu era fraca! Com a arma apontada para o marido, que tentava entender o que estava acontecendo, só fazia a mesma pergunta: "O que você fez ao Ícaro?". Seu José parecia estar num sonho, custou a entender tudo. Em meio aos protestos da irmã e do cunhado do seu josé, o menino Ícaro surge, e ao ver a arma apontada para o pai que estava deitado: " Mãe, nãããooo!". O barulho do disparo me estrondou inteira, meu corpo não aguentou tamanha pressão e eu desmaiei. Ícaro estava agarrado as pernas da mãe, contando o que acontecera. A mulher com os olhos marejados com lágrimas de ódio fitaram seu José, que saiu correndo. Chegou até a porta da cozinha, e como estava trancada, se viu encurralado. Encolheu-se entre a pia e a dispensa, pedindo pelo amor de Deus. Ela posicionou a arma em direção a sua cabeça e mandou que a olhasse. O infeliz levantou a cabeça devagar e olhou a figura da mulher de camisola branca com arma em punho. Implorou novamente e ela o calou, rogando aos céus que a perdoasse e mostrou-lhe o que a sua atitude montruosa acarretara. Ela matara o marido; e o filho certamente iria ficar com muitas sequelas daquilo tudo, seria presa em poucas horas e nada no mundo iria impedí-la de matar o causador de sua dor. Outro estrondo ecoou e a polícia chegou rápido, alertada pelos visinhos.
Hoje, estou com sessenta e oito anos e sou cuidada por uma filha. Sonho em, antes de morrer, encontrar o menino Ícaro e pedir-lhe perdão por minha negligência e passividade diante de tamanha atrocidade. Perguntar-lhe se poderia, sinceramente, perdoar uma velha que passou a vida inteira com o peso da culpa nas costas, se martirizando por não ter dito nada. Pedir-lhe perdão também pela ruína de sua mãe e de sua família. Não sei se vou encontrá-lo ou, se isso acontecer, ele poderá me perdoar, mas eu tenho que tentar, tenho que, pelo menos, amançar a dor que só se consiste a cada dia. Queria poder morrer com uma pontinha de paz que nunca tive. Queria poder voltar no tempo, daria minha vida se fosse preciso. Olho a foto que roubei da casa antes de ir embora. Olho para aquela família feliz estampada num pedaço de papel como punição pela minha falta de atitude. A destruição daquele âmbito familiar foi culpa minha. Tudo por eu ser apenas a empregada.