sábado, 18 de dezembro de 2010

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  A minha natureza cética me permite fazer perguntas. Questionar e confrontar faz parte da minha essência. As perguntas tem o poder de nos levar a muitos lugares e conforme encontramos as respostas, mais intrigante fica esse jogo. Me dei conta das jogadas perigosas a pouco tempo.
  A cada passo que fazia meus questionamentos sobre tudo ao meu redor, eu adentrava num lugar desconhecido. Uma aparente estradinha estreita era o que eu podia ver. Sentia como se tivesse uma densa mata de sendo cortada apenas pelo caminhozinho que seguia, mas não podia ver e nem sentir nada, estava na total escuridão. Já estava muito longe e não podia voltar, teria que dar continuidade a jornada, mesmo que não soubesse aonde chegaria. Cada vez que me aprofundava nas perguntas, sentia que o pouco de luz que tinha ia apagando a medida que as questões ficavam sem respostas.
  Num certo momento, senti meus tênis pesados e encharcados. O caminho se transformara num rio, totalmente negro e eu não havia percebido. Notei que as águas eram muito calmas, o único movimento que fazia era produzido por meus pés, quando andava. Era interessante que a água emitia reflexos de luz, mas não tinha luz alguma no lugar.
  Meu olfato paracia não funcionar, não sentia cheiro nenhum. Me veio uma vontade irresistivel de deitar ali mesmo. A água mal cobria o peito do meu pé, não haveria problemas. Poucos momentos após sentir a água molhar as minhas roupas e o meu cabelo, sentindo ela chegar na metade da minha bochecha, tornei minha atenção à escuridão que se seguia acima de mim. E as malditas perguntas continuavam brotando feito uma fonte de água natural e aos poucos, a água que me cercava foi aumentando. Mas a sensação que eu tinha era de que estava afundando num rio imenso e desconhecido. Prendi a respiração e me deixei afundar.
  Perguntas, perguntas, perguntas. Abri os olhos e me encontrei no banheiro da minha casa. Sentei no vaso e tomei um pouco de ar. Tudo continuava muito escuro. Abri a porta. Apenas um passo para fora e a porta se fechou. Mais uma vez, me senti impressionado, porque a luz que iluminou o banheiro vinda propriamente de fora, foi cessada assim que a porta se fechou. Me vi novamente no lugar onde tinha estado momentos atrás. Dessa vez, sem estradinha e sem riozinho. Não havia nada, nada.
  Já não tinha para onde correr ou a quem chamar. Restava apenas eu mesmo naquele lugar. Eu já não controlava as perguntas que pareciam ter vida própria. Comecei a perceber que elas, de um jeito ou de outro, me levavam a uma única, cuja resposta poderia me tirar de todo aquele tormento: Deus? Uma luz de pôr-do-sol levantou-se tímida no horizonte ao meu lado direito e foi aí que meus olhos se abriram surpresos para o que me esperava: Um abismo indiscritivelmente colossal mostrou-se com a mínima luz e não pude ver mais nada adiante. Um pé atrás para servir de apoio, me inclinei um pouco para baixo para tentar enchergar alguma coisa, era um buraco negro. Olhei dos dois lados e só pude ver a linha tênue que se alastrava por todo o meu campo de visão, apenas mostrando a terra a que eu pisava cortada pela imensidão negra à minha frente. Olhei para as minhas próprias mãos e meus pés. Tentei achar a resposta, motivado pelo pavor que se alastrava pelos nervos das minhas costas. Ainda continuo aqui, com o abismo como visão desde o acordar ao adormecer.

domingo, 7 de novembro de 2010

MonoTexto 04: Primaveril



Meus olhos cerrados veem a imagem nítida do nosso encontro. A água da chuva ainda inundava o chão e nós estávamos sentados na beira da calçada. Numa outra respiração, observo a mesma cena, estávamos com treze anos, éramos crianças e havia brincadeiras. Eu olhei para o fundo magnífico dos teus olhos azuis e me senti forte e, pela primeira vez, confiante. Ainda continuávamos a brincar. Foi um beijo inocente, eu sei, mas significa muito pra mim. Talvez nós tenhamos dado as mãos, não me recordo bem, só o que me fica é a sensação física da tua presença e daquele sorriso de criança que trocávamos. Eu te precisava, você me precisava. Apenas eu e tu, alí, brincando, éramos e estávamos afins. Abri os olhos e vi a luz do dia e a fumaça dos carros, esqueci que tinha sido apenas um bom sonho numa noite de primavera.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

MonoTexto 03: Érica


Estava a 20 metros do cruzamento quando ela atrevessou a rua. Ponho-me a olhar, e ela estava com uma criança no colo e um boné velho de propaganda qualquer, roupas desgrenhadas e os pés rústicos calçavam um chinelo velho. Antes de chegar a outra calçada, ela olhou distraidamente e me viu. Me fitou por um segundo e estendeu na face um sorriso que me era tão familiar e nunca tinha me dado conta. Em todo o instante do meu atravessar a rua, olhei para aquela figura de mãe que andava com o menino nos braços, despreocupadamente, bem no meio da rua. Pude pela primeira vez ver seu filho e ele também me olhou. Uns segundos apenas e logo pus minha cabeça ao horizonte, voltei a atenção ao meu próprio caminho.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Me perdoe, menino Ícaro.




Naquele dia eu arrumei as malas com o choro de quem está prestes a ir à forca. O casarão estava vazio e o menino Ícaro já fora para a casa dos tios de Londres. Ao ver pela útima vez o lugar onde servi, não pude evitar que a culpa caísse sobre meus ombros de novo. Como não me culpar por toda a ruína da família que sempre cuidei com amor e carinho? Como não me sentir negligente por ter ficado calada diante de toda a barbaridade cometida, de certa forma, às minhas fuças? Como não me colocar no lugar do pobre menino Ícaro, que sofreu calado toda a violência? Espero que um dia, eles possam me perdoar.
Tinha terminado de trançar o cabelo, me deu cede e fui até a cozinha beber água. Lavei o copo e guardei-o. Lá da cozinha, vi que uma janela da porta da sala estava aberta, atravessei o cômodo e fui fechá-la. Empurrei a trinca quando ouvi algo estranho para uma noite comum, um grito abafado vindo do andar de cima, e pela proximidade, esses ruidos deveriam vir do quarto do menino Ícaro. Subi as escadas com uma certa pressa, mas sem fazer muito barulho. À passos lentos cheguei próximo a porta do quarto e não ousei abrir. Percebi que o menino parara de gritar e voltei ao meu quartinho, nos fundos da casa. Demorei a pegar no sono, minha mente me atormentou com questionamentos e não me saia da cabeças seus gemidos abafados. O que seria?
Levantei às cinco e meia da manhã como de costume, abri todas as janelas da casa e as portas principais, coloquei água pra ferver e fui cuidar dos outros afazeres da rotina matinal. Pouco à pouco as pessoas da casa foram acordando, primeiro desceu a irmã de seu João Manoel, depois seu marido, seguido por dona Maria Antônia. Seu João Manoel foi um dos últimos a descer, e ao ver que o menino Ícaro não tinha descido ainda, mandou-me ir acordá-lo. Abri a porta e o vi sentado na cama, ainda com o pijama. Seu olhar petrificado na parede me assustou e tentei buscar sua atenção pigarreando, mas ele apenas cerrou os pulsos, afundando-os no colchão. Abri as cortinas e quando a luz da manhã adentrou no quarto, ele olhou pra mim e disse que jantaria na cama. Prontamente desci e comuniquei aos senhores. Uma breve discussão entre eles e decidiram por deixar o menino comer no quarto mesmo. Preparei seu café-da-manhã e levei até ele, deixando a mesinha em cima da cama. "Feche a porta quando sair." foi a única coisa que disse. Percebi que algo estava estranho com o menino alegre que levantava com um sorriso de lado a lado do rosto, mas nada disse, sempre me mantive no meu devido lugar e até mesmo pela educação rígida que recebi durante a minh infância, nunca iria me manifestar nos assuntos dos patrões.
Durante toda a estadia dos tios, o garoto permanceu num estado anormal: Mal deixava o quarto, e quando saía, era para algo muito essencial, como ir ao banheiro ou comer alguma coisa. A mãe estranhou esse comprotamento e teve uma conversa com o menino, deixando o assunto para lá após seu João Manoel explicar-lhe que era apenas uma fase de criança e logo iria passar. Eu observava de longe o que acontecia, apenas observava, calada e subjugada. Notei que, apartir do momento em que os tios voltaram para Santos, Ícaro passou a sair mais do quarto, mas continuava muito estranho. Andava pela casa arrastando um cobertor que adorava quando era criança, dado que ele já tinha oito anos e o cobertor estava velho, sujo, rasgado e com um cheiro de mofo dos diabos. Ficava pelos cantos e passeava pela casa calado, com o semblante incógnito que me dava arrepios, o menino mais parecia uma assombração. Várias foram as vezes que me assustei enquanto fazia algum afazer e ele passava por mim com seus passos curtos e demorados, como se estivesse a se arrastar. O garoto não estava bem.
Três meses após a visita dos tios, chegara uma carta, comunicando uma volta, eram as férias de verão. Sabendo da notícia, Ícaro simplesmente tracou-se no quarto e se enfiou embaixo das cobertas. Seus pais não perceberam isso, mas eu sim. Empurrei a porta com o cotovelo, deixei o lanche da tarde em cima do criado-mudo e sentei-me ao seu lado, dando-me uma liberdade espontânea que nunca tive. Passei a mão em sua cabeça pelo cobertor e o perguntei o que estava acontecendo. "Nada.", limitou-se a isso.
Na segunda noite da volta da irmã e o cunhado de seu João Manoel, fui até a cozinha novamente, só para me certificar de algo que nem sabia o que era. Mesmo com a casa dormindo, resolvi tomar água como desculpa. Tudo ok, adentrei na sala e de lá ouvi novamente os mesmos sons da outra noite, subi as escadas e a porta do quarto do menino estava entre-aberta, apenas uma fresta. Aproximei da porta à passos cuidadosos. Olhei e direcionei a visão para o garoto. Sinceramente, demorei a entender o que se passava, mas, era aquilo mesmo. Olhei mais duas vezes e soltei um "Ah!". Fui ouvida. Desci o mais rápido que pude, tranquei a porta do quarto e impurrei o guarda-roupa para me sentir mais segura.
A rotina recomeçava como sempre e, apesar de todo o cansaço pela noite não durmida, tentei não chamar maiores atenções. Todos desceram e tive que levar o café do menino Ícaro para o quarto. Na volta, baixei a cabeça quando vi o José Carlos subindo. Me pegou pelo braço, "Acho bom você permanecer calada!". Entrei num pânico silencioso, eu que sempre fui submissa, tive um medo terrível do que pudesse acontecer comigo e até mesmo com o pobre garoto. O dia correu sem maiores complicações, exceto toda a tensão vivida por mim e por Ícaro que passava despercebida aos demais. No meio da tarde, fui ao quarto do menino e encontrei, dobradinho em baixo do travesseiro um lençol com uma mancha de sangue. Levei a mão à boca e olhei pela janela e o vi brincar no jardim. Seu José estava se aproximando quando por puro instinto maternal, o chamei. Quando apareceu na porta, sua expressão era de gratidão e eu apenas sorri.
A minha angústia aumentava a cada passo que eu via o menino Ícaro. Imaginar o que passava sem ter forças para esbravejar era atormentador. Passei a chorar as noites a dentro antes de dormir. Tentei me aproximar do garoto, mas ele se fechou completamente. Via o terror nos seus olhos quando olhava para o tio e a expressão escancarada de alívio toda vez que aquelas visitas indesejadas iam embora. Essa situação se repetia desde que chegavam as malditas cartas de aviso até os cumprimentos de adeus. Eu tentava salvar o menino de todas as formas que podia, mas não podia muito, pelo menos não o bastante. A assombrozidade da história vivida por um garoto de apenas oito anos se arrastou por um tempo. Alguns anos. E me levou junto. A passividade corroía minha alma e acabou com quem eu era. Mas, eu era apenas a empregada.
No dia vinte de agosto de 1937, dona Maria Antônia achou o pijama do menino enrolado no fundo do guarda-roupas. Tinha manchas de sangue na parte de trás. Ela prontamente me chamou e num tom de quase descontrole perguntou-me o que significava aquilo. "Não sei.". Foi o que disse, "Não sei.". Queria ter forças para falar tudo, dizer e gritar o que vinha acontecendo, mas diabos, eu era apenas a empregada. A aconselhei para conversar com seu filho e o examinar como mãe. No começo da noite, quando o menino chegara da escola, ela exigiu dar banho nele e, sob todos os protestos, entrou no banheiro e fechou a porta. Tentei ficar o mais perto possível, me sentia instigada a ficar próximo. Sei que ela tentou ser cuidadosa, mas a dor de ter o filho violado era maior do que ela podia suportar. Ao ouvir os berros de Ícaro e os gritos da mãe, seu João Manoel abriu a porta e perguntou o que se passava. Ele sem saber, tinha invadido o instinto de uma mãe e, como uma verdadeira leoa, o expulsou de lá e trancou a porta com chave. De duas coisas eu soube naquela hora: Ela estava disposta a tudo para cuidar do filho e Seu João era o suspeito que estava no seu alvo. Aquela noite seria longa demais pra mim.
Quando o filho não quis contar o que tinha acontecido, mandou-o se trancar no quarto e só sair quando ela mandasse. Me mandou fazer o mesmo, e quando eu quis argumentar, me pegou pelo braço e me arrastou até o quartinho dos fundos, me trancando pelo lado de fora. Tentou não chamar a atenção do marido, que dormia na cama. Entrou em seu quarto e pegou a arma do esposo que ficava escondida atrás do criado mudo, acordou-o com uma tapa na cara. "O que você fez ao Ícaro?". "...Hm, o quê?". "Responda!". Nesse momento, entraram no quarto a irmã do seu João e seu marido. Dona Maria estava fora de si. Seus gritos eu ouvia lá do quartinho e isso me deixava louca. Maldita passividade, como eu era fraca! Com a arma apontada para o marido, que tentava entender o que estava acontecendo, só fazia a mesma pergunta: "O que você fez ao Ícaro?". Seu José parecia estar num sonho, custou a entender tudo. Em meio aos protestos da irmã e do cunhado do seu josé, o menino Ícaro surge, e ao ver a arma apontada para o pai que estava deitado: " Mãe, nãããooo!". O barulho do disparo me estrondou inteira, meu corpo não aguentou tamanha pressão e eu desmaiei. Ícaro estava agarrado as pernas da mãe, contando o que acontecera. A mulher com os olhos marejados com lágrimas de ódio fitaram seu José, que saiu correndo. Chegou até a porta da cozinha, e como estava trancada, se viu encurralado. Encolheu-se entre a pia e a dispensa, pedindo pelo amor de Deus. Ela posicionou a arma em direção a sua cabeça e mandou que a olhasse. O infeliz levantou a cabeça devagar e olhou a figura da mulher de camisola branca com arma em punho. Implorou novamente e ela o calou, rogando aos céus que a perdoasse e mostrou-lhe o que a sua atitude montruosa acarretara. Ela matara o marido; e o filho certamente iria ficar com muitas sequelas daquilo tudo, seria presa em poucas horas e nada no mundo iria impedí-la de matar o causador de sua dor. Outro estrondo ecoou e a polícia chegou rápido, alertada pelos visinhos.
Hoje, estou com sessenta e oito anos e sou cuidada por uma filha. Sonho em, antes de morrer, encontrar o menino Ícaro e pedir-lhe perdão por minha negligência e passividade diante de tamanha atrocidade. Perguntar-lhe se poderia, sinceramente, perdoar uma velha que passou a vida inteira com o peso da culpa nas costas, se martirizando por não ter dito nada. Pedir-lhe perdão também pela ruína de sua mãe e de sua família. Não sei se vou encontrá-lo ou, se isso acontecer, ele poderá me perdoar, mas eu tenho que tentar, tenho que, pelo menos, amançar a dor que só se consiste a cada dia. Queria poder morrer com uma pontinha de paz que nunca tive. Queria poder voltar no tempo, daria minha vida se fosse preciso. Olho a foto que roubei da casa antes de ir embora. Olho para aquela família feliz estampada num pedaço de papel como punição pela minha falta de atitude. A destruição daquele âmbito familiar foi culpa minha. Tudo por eu ser apenas a empregada.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

O anjo e o agourento.


Ele demorou a subir toda a montanha. Já estava exausto quando chegou lá em cima. Vestido com roupas escuras, notava-se de longe quem era. Creio que ele tenha se impressionado com a vista do topo, respirou fundo e simplesmete sentou, chamando por mim em seus pensamentos. Estava observando-o desde que saira de sua casa. Perambulei pelos céus olhando-o e cuidando de sua segurança. Vi que passou por muitas coisas para chegar até o topo da tal montanha e me chamar. Ouvi suas lamúrias e seus "porquês" com uma certa atenção. Talvez eu não tivesse me dado conta do quão confusa era sua mentezinha mortal; do quão ele estava ligado a carne e a vida mundana, esquecendo-se do seu próprio corpo e do seu valor. Agora, ele tinha a plena conciência de que eu era o único que o via como era, que dava-lhe o devido valor; que se preocupava e o amava como nenhum outro amou. Não tenho certeza, mas sinto que caiu uma lágrima quando pensava nisso. Perambulei mais um pouco pelo céu, ouvindo-o me chamar. Queria ver até onde iria.
As estrelas já estavam surgindo lá em cima quando mergulhei abaixo das nuvens e desci devagar, pousando em pé, do seu lado.
- Por que demorou? - Indagou.
- Não posso vir sempre que seus caprichos pedirem. - Disse eu, com firmeza.
- Acha mesmo que isso é um capricho? - Retrucou.
Silêncio. Ficamos assim por um bom tempo, olhando o céu tornar-se negro com seus milhares de pontos brilhantes. Pensei em várias coisas com todo aquele silêncio, mas sinceramente, aquela situação era meio embaraçosa. Não sabia porque ele me chamara tanto; o porque de tamanha insistência e aquilo me afligia. Não ousei ouvir seus pensamentos dali em diante. Não sei, não me parecia honesto, apesar de estar ansioso para que abrisse a boca. Olhei-o de soslaio algumas vezes. Seu olhar firme no infinito, como se estivesse perdido ali, me deixava mais confuso. Foi-se o último raio de sol daquele dia, e eu ainda estava em pé e ele sentado ao meu lado.
- Você não vai sentar? - Perguntou, sem tirar o olhar das estrelas.
- Não se preocupe comigo. Para que me chamou? - Perguntei.
- Não o chamei. - Respondeu, com ar de assustado.
- Não me venha com criancices agora, sabes muito bem que se estou aqui é porque você gritou por mim.
- Talvez só esteja sentindo sua falta. - Disse, perdendo-se novamente no brilho dos astros.
- Não deveria sentir, não faço parte desse mundo.
- Mas faz parte de mim e isso me basta.
- Já está na hora de ir. Está tarde, pode ser perigoso para você voltar.
- Tenho você para me proteger.
- Não conte com isso.
Não esperei ele se manifestar, abri as asas e pulei do penhasco, subindo para o infinito logo em seguida. Acompanhei-o até chegar em casa, e velei seu sono em segredo. Sei que ele sentiu minha presença ali. Vi alguns de seus sonhos e antes do amanhecer fui embora. Vaguei pelos céus, indo do Cristo Redentor a Cordilhiera dos Andes, já não sabia mais em que pensar. Eu era um anjo, e já não era do mundo humano, então porque eu estava tão ligado a um mortal? Um mero mortal que fez parte do meu passado na terra e que hoje eu o guardo. Tenho a certeza de que os outros anjos não têm esse tipo de ligação com seus protegidos. A grande maioria deles nem sequer mostram as fuças... Conversei com Deus, sentado num precipício. Pés balançando e toda a imensidão do mar à minha frente. Perguntei o porque de tudo aquilo. O porque de só acontecer comigo; não tive uma resposta concreta, mas senti uma calma extraordinária, uma paz reconfortante.
Caminhei, então, por ruas, vendo as pessoas em suas vidas apressadas; vendo todo o aprendizado na vida destes probres infelizes. Sobrevoei uma escola e pousei no topo de um arranha-céu. Pus-me a observar todos aqueles carros, a vida que brotava em dados pontos da cidade. Ver aquela selva de pedra sendo contrastada pela luz doce do pôr-do-sol era imensamente prazeroso. Toda a atenção voltada para tudo aquilo e derrepente, uma voz me chamava. Rafael me chamava. No topo da montanha novamente. Desci e fiquei ao seu lado.
- Pensei que não viria hoje.
- Sempre que você chama eu venho, não venho?
- É.
- O que houve? - Perguntei, vendo sua cara levemente preocupada.
- O de sempre: Família. - Disse ele olhando pra mim.
No seu olhar, senti algo diferente. Algo como um pedido ou súplica.
- O que você quer? - Perguntei, tirando o olhar.
- Já leu meus pensamentos, porque então, pergunta?
- Não li, vi no seu olhar um pedido perdido. Anda, diga o que quer.
Olhou-me insistente e disse:
- Quero um abraço.
Confesso que fui pego de surpresa. Não imaginava que seria esse o tal pedido. Qual o motivo desse sentimentalismo? Não se mostrou assim na minha época terrena. Sabia que a luxúria imperava na sua vida, mas, porque aquilo agora? Um sentimento de esperança bateu em meu peito. Será que, com a minha partida brusca e repentina ele teria mudado? Se revisto? Eu não sabia. Não podia mais ouvir seus pensamentos. Me dei conta que só ouvia quando ele me chamava. Somente e apenas isso. Não teria como ter certeza. E talvez não quisesse me arriscar outra vez.
- Os anjos têm mágoa? - Disse, interrompendo meus desvaneios.
- Você não pode me tocar, sou feito de luz. E a luz não pode ser tocada.
Abri bem as asas e mostrei-o o quão grandioso era meu brilho. Nem o sol conseguiu osfuscar. Mostrei-me inteiramente como era e olhei para ele. Ele estava olhando a paisagem a sua frente. Algo me disse naquele momento ele sentia uma imensa falta minha e me olhar daquela forma o deixara triste. Ver que eu já não fazia parte daquele meio e que não poderia ter o que sempre teve e não deu atenção devida. Talvez ele realmente desejasse me ter ali  perto. Talvez ele tivesse aprendido e visto o que era importante, afinal. Talvez eu pudesse até voltar. Isso, voltar e refazer o que nunca foi feito. Mas, eu não poderia continuar ali...
- Tem que ir agora. A noite está caindo.
- Sempre vai embora assim, do nada. Porque? Acaso não queria estar aqui?
- Se eu não quisesse, não estaria. Agora vá. Vá. Vá. Já vai escurecer.
Novamente levantei voo. Nunca soube ao certo porque não o encarava de frente. Sempre ia embora antes de responder a certas perguntas e nunca me questionei. Só sei que não conseguiria responder. Resolvi andar às margens do Nilo para pensar. Em certo ponto, agachei-me e comecei a olhar o circuito das águas. Rafael não me saía da cabeça e e já estava ficando preocupado. Seria normal um anjo sentir isso? Teimava em não aceitar tudo aquilo, mas já era tarde. Certamente que ele não era mais o mesmo de alguma época atrás. Não era mais o mesmo garoto que me magoou enquanto eu vivia na Terra. Algum sentimento ele continuou nutrindo, mesmo depois de minha partida. Saudade talvez. Mas era mais forte que isso, mais visível que isso. Não o via em más companhias e estava saindo menos. Estava se envolvendo mais com as pessoas em si, e não só com seus corpos. Sem me dar conta, permiti que o sentimento de amor e apego humanos invadissem aos poucos. Quando me dei conta, já estava novamente afeiçoado a Rafael. Confuso.
Novamente fui a Cordilheira dos Andes para conversar com Deus. Sentei-me no mesmo precipicio de sempre e olhei para os céus, fechei os olhos. Disse a Deus tudo o que sentia, tudo o que estava se passando, chorei. Analisei com ele os prós e os contras, tentei esvaziar tudo o que estava na minha cabeça. Deitei-me no chão de terra vermelha e observei o sol. Arrisquei para encontrar a paz num grito silencioso, quando senti uma presença gloriosa, era Castiel e queria falar comigo.
- Você tem uma escolha importante a fazer e precisa pensar muito bem antes de escolher. Você nutre um sentimento que não é para um anjo...
- Eu sei, mas não tenho culpa...
- Calma, eu não disse que tinha. Você tem um laço com esse garoto que não conseguirá quebrá-lo. Foi-lhe dado o direito de voltar pelo tempo necessário para que tudo se resolva. Serás feito do barro daqui e serás desfeito quando quiseres.
- Mas...
- Assim o Senhor dos senhores quer e assim será. Agora fique aqui, você não deve voltar. Durma, descanse porque sua jornada vai ser longa.
Dito isso, sumiu no espaço, como quem se desintegra. Fiquei atordoado com aquele aviso. Não imaginaria que seria dado a mim essa prerrogativa. Nunca tinha ouvido falar disso entre os anjos e eu já nem sabia o que pensar. Dúvidas brotando a todo momento e o medo chegou logo. Sentei-me numa pedra e baixei a cabeça com as mãos nos cabelos. O que seria de mim dali em diante? O que eu iria fazer quando voltasse? A quem iria procurar? Como saber o que fazer? Onde seria o caminho? Socorro. Chorei em prantos e novamente louvei ao Rei dos reis. Aos poucos me acalmei e acabei adormecendo por ali mesmo. Acordei com o orvalho da manhã e uma brisa no rosto. Percebi que estava numa estrada, tinha carros e barulho e eu estava sujo. A poeira que os carros levantavam irritou o meu nariz e espirrei. Assustei-me comigo mesmo, pus-me a me tocar e não acreditei: Tinha carne e osso por toda a minha luz. Onde estão minhas asas? Passei a caminhar seguindo as placas e logo cheguei a Recife. Meu pés estavam me matando. Tive que andar muito até a casa de Rafael. Quando finalmente cheguei, sua mãe disse-me que ele não estava. Fui procurá-lo. Tentei lembrar-me dos lugares que costumava ir. Passei por uma praça, alguns bares e a faculdade. Nada de encontrá-lo. Até que, num dado cruzamento, o avistei de longe. Tive a certeza de que era ele e passei a segui-lo. Numa esquina, quase o perdi, mas vi que tinha entrado em um certo estabelecimento e fui até lá. Exigiram dinheiro para que pudesse entrar, e como não tinha esperei lá fora. Passadas algumas horas, ele saiu alvoroçado, acompanhado de quatro rapazes bem-afeiçoados. Altos, fortes e bonitos. Decidi não levantar de onde estava. O coração que fora me dado a pouco, começou a bater forte ao ver aquela cena. Os cinco entraram num beco escuro. Já era altas da madrugada e estavam certos de que ninguém os incomodaria. Acabei por observar tudo aquilo de longe e por mais que aquilo doesse mais do que ser atravessado por uma lâmina, não saí dali. Não tinha forças para mais nada além de testemunhar aquela cena. Tudo terminado, se ajeitaram como puderam e foram embora. Rafael foi o último a sair e me viu assim que pisou no asfalto. Sorriu, mas logo percebeu que algo estava estranho. Me viu chorando, sujo e sem minhas asas. Com os pés machucados. Parecia atônito e com certeza entendeu tudo. Gritou meu nome, mas saí correndo dali, acabei sentando num banco de uma parada de ônibus e chorei. Nunca tinha chorado daquele jeito em vida. A dor que no meu peito explodia a cada segundo, ao lembrar de tudo e principalmente depois de tudo o que fiz para poder voltar, parecia inundar meu corpo.
Começou a chover forte e aquilo me fez lembrar as palavras de Castiel: "Serás feito do barro daqui e serás desfeito quando quiseres.". Entrei na pista , meus pés inchados e machucados estavam explodindo de dor. Caminhei até a faixa branca que dividia as duas mãos. Pessoas nos carros me olhavam com indiferença e as lágrimas caíam sem nenhum impecílio. Abri os braços e clamei ao Senhor. Clamei, clamei e clamei. Levantei o olhar para o altíssimo e louvei. Pedi com toda a força que tinha o meu espírito naquele momento, supliquei a Deus para que a dor que afligia todo o meu ser fosse levada pela a água da chuva. Supliquei também que o barro que me fora dado para retornar, fluísse com as gotas que caíam do céu. Implorei, mostrando o quanto eu estava machucado e o quanto eu necessitava do Senhor ali, naquele momento. Roguei com toda a potência da minha voz, e aos poucos, senti-me derreter. O barro estava escorrendo por cada parte de mim, eu estava sendo desfeito. O boneco que havia me tornado por amor, estava indo embora com a água, manchando o azul-escuro do asfalto com o vermelho da lama. Todo o momento com os olhos fechados, senti a presença de Deus ao meu redor e a tranquilidade que seu conforto me trazia me fez apenas permanecer com os olhos fechados e simplesmente sentir e confiar em tudo o que estava sendo feito por mim ali. Aos poucos, frestas de luz do meu verdadeiro eu foram brotando da lama que escorria até os boeiros próximos. Cada vez mais fui me sentindo liberto e em pouco tempo pude abrir minhas asas como nunca fiz antes, era a mais pura e genuína sensação de liberdade que já experimentei. Levantei voo assim que a última gota da lama escorreu de uma de minhas penas. Voei para em longe dali e fui agradecer ao Pai por ter me libertado. Subi acima das núvens e vi o céu inteiramente azul-anil. Permiti que o brilho do sol iluminasse tudo o que eu era. A paz voltara.
Castiel veio falar comigo depois de eu ter aproveitado toda a sensação de liberdade. Disse-me que deveria voltar a companhia de Rafael. Guardá-lo como antes fazia e que a decisão de mostrar-me a ele seria totalmente minha. Voltei. Apartir dali, vijiava-o como deveria ser e me contentava em ser o anjo-guardião dele. Nunca mais dei ouvidos às suas súplicas para conversar comigo. Ele subia todos os dias a montanha para esperar que eu aparecesse novamente. Nunca permiti que ele se sentisse culpado por o que acontecera. Sempre que a culpa caía sobre seus pensamentos, soprava-lhe boas palavras em seus ouvidos e ele acabava por acalmar-se. Hoje me sinto feliz, feliz por ter a certeza de que sou capaz de amar inteiramente. Feliz por ser um anjo e ser útil. Apenas a paz reinando em mim me basta hoje.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Companhias Inevitáveis.

 

Os brinquedos estavam espalhados pelo jardim, onde Daniel sempre adorou brincar com seu irmão mais velho. Corria pela casa, transmitindo toda a alegria de uma criança saudável. Por ser o caçula, tinha um pouco mais da atenção dos pais. Desde pequeno estava sempre aplicado nos estudos. Sua vida era confortável, já que seus pais eram empresários bem-sucedidos. Tinha os brinquedos que queria, na hora em que queria. A infância deste garoto foi tranquila, tendo em vista todos os mimos que lhes eram dados sem o menor esforço, a não ser, os estudos.
Ao entrar na adolescência, lá pelos seus treze anos, começou a perceber que algo havia de errado com ele: Sentia atração pelos rapazes. Entrou em conflito consigo mesmo durante um tempo. Achava que aquilo iria passar e que iria terminar casado e com muitos filhos. Foi aí que Lucas apareceu. Dezesseis anos, corpo atlético e boa pinta. Todas as meninas da escola afim dele e ele exercia certa atração em Daniel. O observava nas aulas de educação física e pensava nele à noite antes de dormir. Lembrava do seu corpo suado, aqueles músculos em movimento e no seu cheiro. Assustava-se com tudo aquilo, não era normal. Num acaso do destino, acabaram se conhecendo e em pouco tempo viraram grandes amigos. Daniel nunca teve coragem de contar sobre tudo o que sentia e nem desconfiava que Lucas já havia percebido seus olhares. Bastou Daniel ir dormir na casa de Lucas e pronto, foi apresentado a Luxúria: Uma mulher bela, de curvas pefeitas que carregava a sensualidade no ser. Deleitou-se com tudo o que a bela mulher o dizia para fazer, e com Lucas, teve uma noite de descobertas e muito prazer.
 Apartir daquele instante, a Luxúria foi sua companheira fiel de bons momentos. Sempre ficava atento ao que ela lhe falava. Dado que, em certas ocasiões, ela atrapalhava sua vida, mas sua companhia era satisfatória. Alguns amores rompidos por causa de traições que ela insistia em lhe proporcionar não eram nada diante de todo o bem que ela lhe fazia. Aos vinte anos, ela já lhe ensinara tudo sobre a arte da conquista. Disse-lhe para entrar numa academia e assim chamar mais a atenção dos rapazes. Com o tempo aprendeu sobre moda e penteados e a uma prima da Luxúria foi apresentado: Vaidade. Uma mulher extremamente magra e cheia de si. Soberba e esnobe, andava olhando pra tudo de cima. Com o tempo, também passou a escutar seus conselhos. Essas duas o acompanhavam por onde ele ia. Eram inseparáveis.
Daniel estava com vinte e cinco anos. No auge de sua beleza e popularidade. Onde quer que chegasse, nunca estava só, sempre na compainha de belos rapazes. Era o tipo de cara que chama a atenção de longe. Noitadas, festas e orgias, não tinha do que reclamar. Tinha um bom emprego e uma bela casa e a luxúria como dama de companhia. Desenvolveu uma ninfomania. Todos os dias ele bebia o líquido que saída da boca da bela mulher, obedecendo seus mandamentos. Cada noitada, um cara diferente. Mas ele não se descuidava. Ah, isso que não! Sabia o que essa vida acarretava e se cuidava muito bem, assim, poderia aproveitar até a última gota do que a vida lhe proporcionava de bom.
Aos trinta e dois, já estava estabilizado na vida. Tinha dois carros na garagem, uma cobertura à beira-mar e uma casa confortável num dos melhores bairros da cidade. Sentia-se meio só às vezes, mas era coisa passageira. Sua vida agitada, fazia com que sempre tivesse companhias. Com o tempo, sentiu seus amigos um tanto afastados. Ou tinham ido embora, ou estavam namorando, ou atolados pelo trabalho. Suas únicas companhias acabavam sendo as pessoas com quem ele transava. A empresa que abrira a dois anos estava rendendo bons frutos. E a Luxúria e a Vaidade continuavam firmes e fortes do seu lado. Continuava muito belo e vaidoso. Sempre chamando a atenção dos garotões. Aos trinta e sete, as festas já não tinham tanto gosto assim, preferia um cineminha e barzinhos, sem deixar a de seder a Luxúria, claro.
Pouco depois de fazer quarenta e três anos, sua empresa entrou em crise, teve que diminuir o número de funcionáros e de produção. Vendeu os carros e a casa que tinha. Comprou um carro popular e passou a morar na cobertura que lhe restara. Viu que depois disso, grande parte dos amigos que tinha se afastaram. Passou a se afogar  no trabalho para esquecer a imensidão da casa que o esperava todas as noites. Aos poucos, percebeu que a Luxúria tinha se afastado, ele já não tinha o mesmo corpo e o fogo de antes. Estava quase falido e não exercia o mesmo facínio nas outras pessoas. Ele já não servia mais. Mas, não sabia ele, que antes de ir, ela o deixou aos cuidados da irmã, a Solidão, que chegara na fase dos trinta anos, sem que ele percebesse. Uma velha decrépta, fedorenta e incrívelmente chata. Passava o tempo sentada numa cadeira de balanço, se lamuriando e resmungando sobre como tudo seria se tivesse tomado as escolhas certas. Daniel não gostava, não gostava mesmo da Solidão. Passou a chorar com mais frequência.
Chegando aos cinquenta e cinco, já se via sem esperança alguma. Não se olhava mais no espelho e hora ou outra fitava o telefone, esperançoso por uma chamada. Não tinha amigos e apenas um irmão se preocupava em mandar e-mail uma vez por mês. Um choro meloso de criança começou a ouvir dia e noite. Era a Depressão, que agora estava sentada no colo da Solidão. Uma menina que derramava lágrimas sem cessar. E Daniel não gostou daquela menina, mas não podia fazer nada. Andava pela casa, ouvindo aquele choro baixinho, tentando desesperadamente se distrair com alguma coisa, mas essas compainhas não o perdiam de vista Sua existência não tinha mais significado, sempre achou que nunca iria envelhecer. Aquelas duas acabaram por tomar conta de sua vida. Afogou-se no álcool e, alguns anos depois do falecimento repentino do seu irmão, morreu de cirrose hepática, tendo como únicas testemunhas em seu leito de morte, a velha decrépta e a criança de choro meloso.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

MonoTexto 02

Eu era uma criança que acreditava que poderia mudar o mundo!
Mas, o mundo é grande demais, difícil demais, complicado demais e árduo demais.
Sabe de uma coisa? Já não tenho mais aquele brilho no olhar...

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

MonoTexto 01

Felicidade é, em metáfora, uma maldita bandeija de brigadeiros que é distribuida ao longo da caminhada de cada um. Você está sempre atrás da bandeija completa, mas nunca a terá. O ser humano não nasceu pra ser feliz, nasceu pra buscar a felicidade.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

O menino e o pardal.



Acordei numa manhã de sábado. Não tinha escola e nada para fazer.
Nunca fui de fazer amigos, os garotos eram chatos.
Prefiro a solidão mesmo, mesmo que sempre esperando por um amigo (Me contentaria muito com um apenas).
Mas, não tinha nenhum à vista.
Então, sentei-me na varanda para admirar o dia.
Tudo estava entediante (Como sempre, devo ressaltar).
Entre uma balançada e outra, algo me tirou a atenção do vasto horizonte que estava à minha frente.
Era um assovio, que, se não me falham os ouvidos, era de um pardal.
Procurei pelo dono do piado.
Olhei para cima e para baixo. De um lado para o outro, até que achei o tal passarinho.
De fato, era um pardal. Mas um pardal singular e visívelmente especial.
Era um pouco menor que os outros. E suas cores também não eram comum para a espécie: Todo azul com as pontas das asas e da cauda verdes.
Perguntei o que havia. Meio receoso e com um pouco de medo, respondeu que estava com fome.
Prontamente, pedi-lhe para que esperasse um pouco, e com a cabeça, respondeu que sim.
Entrei em casa, peguei um pouco de alpiste e despejei perto dele.
Estava realmente com fome, não deixou um grão sequer.
Sentei-me novamente e comecei a balançar-me, esperando que ele terminasse.
Assim que terminou de comer, voou até o braço de madeira da cadeira de balanço e aos poucos, fui descobrindo sobre sua vida.
Contou-me sobre suas aventuras e voadas pelo mundo a fora. Sobre sua alimentação e sua solidão.
O pardal parecia muito comigo. Era meio solitário, muito inteligente e engraçado. Tinha um jeito próprio e original.
Conversava muito bem e era atencioso comigo.
Apresentei-o à música e ele gostou. Escutamos, então, várias. Gostou de quase todas.
Estava afeiçoado aquele pássaro e, num dado momento, perguntei se poderia dar-lhe um nome.
"Sim", respondeu.
Perguntei se de Pequenino ele gostava. Não houve objeção.
Coversamos sobre tudo naquele dia. O descobri e ele me descobriu.
Revelamos alguns medos e outros e quaisquer segredos.
Realmente era um pardal muito singular e isso me encantou como nunca estive.
Brincamos a tarde inteira. Adivinhação, esconde-esconde, e uns jogos de tabuleiro.
Li algumas crônicas para ele e uns contos também.
Estava certo que havia encontrado um amigo que tanto pedi. Sim, levaria-o para o resto da vida.
Apesar de não ser humano, não tinha problema algum, eu o vi e ele me viu. Convicto de que um laço havia sido feito.
A tarde já estava caindo e não percebemos.
Então, sentamos embaixo da árvore que tinha em frente à minha casa para ver o sol se por.
Logo, seria a hora dele ir, não poderia prendê-lo.
Questionei-o se no outro dia ele viria, respondeu que sim.
Quando estava me levantando, sem a intenção, pisei de leve em sua asa. Creio que o tenha machucado.
Perguntei se estava bem e a resposta foi sim. Perguntei também se daria para voar e a resposta também foi sim.
Não tive tempo de dizer adeus, levantou voo e foi-se com o crepúsculo como paisagem.
Entrei em casa.
Tomei café pensando no meu novo e único amigo.
Fui dormir relembrando os momentos do sábado.
Sonhei.
Acordei, coloquei os chinelos e fui correndo para a varanda.
Mamãe mandou-me voltar para tomar meu café da manhã, e contrariado, tive que fazer o que ela havia mandado.
Engoli tudo e sai.
Sentei-me de novo na cadeira de balanço e esperei.
O dia estava nublado. Cinza.
A manhã toda ouviu-se o ranger da velha cadeira.
O horário do almoço chegou e ele não apareceu. Tive que entrar.
Comi tão rápido como fiz pela manhã e voltei para a varanda.
O dia continuava cinza.
A tarde passou-se lenta e esperançosa para mim. É, passou.
A noite já caía e eu continuava olhando para o céu.
Ví a primeira, a segunta, a terceira estrela...
A escuridão inundou o meu redor e o frio começava a chegar. Eu ainda estava sentado.
Com broncas, entrei em casa para tomar banho e dormir.
Deitei a cabeça na cama e me perguntei o porque do Pequenino não ter vindo.
Será que foi pela pisada na asa do coitado?
Mas foi sem querer, eu pedi desculpas.
Demorei a pegar no sono.
Acordei e fiz o mesmo ritual de antes.
Olhei para o céu o dia inteiro, e nada do Pequenino.
Me entristeci quando percebi que o sol tinha descido sem eu me dar conta.
Logo, tive que ir dormir.
E assim se seguiu por mais três dias.
Estava triste e mamãe já se preocupava.
Numa manhã, levantei, tomei meu café e perguntei a mamãe se poderia dar uma volta pela cidade.
Vendo o meu estado, ela consentiu.
Tomei um banho, vesti uma roupa e fui andar.
Na verdade, esse passeio seria uma procura pelo Pardal azul.
Olhei pelas árvores e pelo imenso céu. Nenhum sinal dele.
Tentei conversar com alguns pardais, mas eles não tinham o costume de falar com os humanos.
Um desespero chegou como não quer nada e alastrou-se.
Imaginei nunca mais vê-lo e não ter mais sua companhia.
Sinceramente, era uma fina e sentida tortura.
Com o passar dos dias, tive uma obssesão: Tentei achar os seus trajeitos e sua peculiaridade nos outros seres.
Caminhava pelos cantos, olhando de lado a lado. Desesperado por algo que me remetesse a ele.
Tentei achar sua cor numa corsa. Sua inteligência num gato siamês. Seu senso de humor num cavalo andaluz. E suas palavras num morcego pescador.
Sabe? Não adiantou. Chorei igual a um condenado e me convenci que não encontraria partes dele em nunhum lugar.
Deus o fez inegavelmente único.
Uns dois meses se passaram. A lembrança do pardal não se apagou. Apenas a minha inquietação acalmou-se.
Tenho certeza de que ele não se apagará, e nem os momentos que passei ao seu lado.
Sua ausência é uma mutilação e me deixou um vazio muito grande. Nunca tive um amigo e ele era o que eu sempre pedi.
Às vezes tento entendê-lo, nunca consegui odiá-lo.
Mas algo me falta.
Olho sempre que posso para o céu, esperançoso ainda, adimito.
Sempre tenho a impressão que ele virá.
Sim, virá.
Queria sua presença por pelo menos alguns momentos.
Que eu possa vê-lo de novo e pedir desculpas pelo machucado em sua asa.
Que possamos conversar e sorrir novamente.
Rogo aos céus que me dê pelo menos mais um dia com o pardalzinho que me fez feliz.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

O voo da borboleta azul.

Lembro que deixei aquele maldito papel cair. Eu já estava preparada, então, o que acontece comigo? Tô deitada na cama e meu coração parece que vai explodir de tanta aflição. Prometi a mim mesma que, independentemente do resultado, iria viver da mesma forma que sempre vivi. Sem essas paráfrases das ideias de falsos poetas. "Viver como se fosse o último dia". Acabei me perguntando sobre essa frase. "Viver como se fosse o último dia"... Será mesmo que valeria apena no meu caso? Acordar e lembrar dessa maldita doença me consumindo pouco a pouco e sabendo que logo estaria morta? Creio que não. Não foi isso que sonhei pra mim. Eu sonhava em me casar e ser uma Amélia da vida. Estranho eu sonhar com isso. Sempre fui meio menino. Jogava bola e andava de bicicleta até os 14 anos. Já fazem 3 que não faço mais isso. Sinto falta. Mas a vida continua e preciso de um copo d'água.
Não quero que essas lágrimas que queimam em meus olhos caiam pelo meu rosto. Assim, terei que enxugá-las. E não quero isso. Queria ter coragem para ler aquele papel de novo, mas, é melhor deixar pra lá. Não vai fazer diferença. A rotina me espera. Amanhã vou à escola. Tenho que acabar tudo com o Benjamin, não posso deixá-lo sofrer com essa bomba. Ele tem sido um ótimo namorado, apesar de não sentir nada muito grande por ele. Apenas carinho e afeição. Ele me acolhe em seus braços e afaga meus cabelos quando brigo com mamãe. Às vezes tenho raiva dela. Ela sai à noite pra colocar comida na mesa e sinto como se eu fosse um peso na vida dela. Mas Benjamin diz que não, que todos os pais amam seus filhos. E o que ele diria de Josef Fritzl? Bem, o fato é que não sei como ele reagirá. Sei que ele gosta de mim. É muito romântico comigo e me protege sempre. É tão chato fazer isso. Era bom que eu sumisse agora, e mandasse tudo isso pro espaço. Mas não posso.
O tempo passou rápido e o intervalo já estava perto. Não saberia como abrir a boca e nem como mentir. Seria bom mentir? Hum... Acho melhor ir para a biblioteca. Vou ler um pouco. Deve ter algum livro engraçado lá. É engraçado como as pessoas me olham. Talvez seja minhas roupas ou o meu jeito de andar. Será que elas me olhariam assim se soubesse do meu câncer? De novo esses pensamentos... Tenho que me disciplinar. Estou vivendo normalmente. Mas, onde estarão os livros de piadas? Será que teria esse tipo de livro numa biblioteca de uma escola? Acho melhor não perguntar, vai que riam de mim e eu vire a chacota da escola...
Abri os olhos e estava na enfermaria. Maria veio me explicar o que aconteceu. Ela foi cuidadosa comigo desde que cheguei na escola. Já fazem 8 anos eu creio. Eu sempre me metia em brigas e ela cuidava de mim. Tem um instindo maternal muito bonito. Ela chegou perto e me disse que eu tinha desmaiado na biblioteca. Me perguntou se eu estava me alimentando bem. Respondi que sim, mesmo sabendo que essa resposta não saiu com tanta verdade pra enganá-la. Ah, eu tenho que viver como sempre vivi, essa é minha meta, não é mesmo? O que importa se forem mais 1, 2 ou 6 meses? Todo mundo vai ter que ir mesmo. O melhor é fazer o que sempre fiz, assim, não suspeitarão de nada.
Comecei a perceber hoje que meu corpo está indo ralo abaixo. Não aceitei fazer a quimioterapia. Não me deram boas chances e minha mãe não teria dinheiro pra pagar. Mas tenho que engordar, se não, começarão a falar. Vou comer alguma coisa. Algo que me deixe forte e um pouco mais gorda. Não muito, claro. O que seria bom pra engordar? Quase levei um susto ao me olhar no espelho agora. Preciso mesmo engordar. Não irei à escola nas próximas duas semanas. Está decidido.
Boas semanas estão sendo essas. Acho que consegui engordar um pouco e pegar um pouco mais de cor. Estava muito pálida e magra. Amanhã vou a escola. Tenho que terminar com o Benjamin. Me veio na cabeça em ser grossa e rude, dizer que ele não é homem pra mim. Mas penso no dia em que partir. Ele certamente ficará chatiado. Acho bom ter a última transa e depois terminar. Isso, farei isso. Agora, o que dizer? Bem, direi que quero um tempo para ficar só, pensar em mim um pouco. Ele vai compreender.
Em poucas horas estava no motel com Ben. Foi um pouco estranho, porque sabia que nunca mais estaria com ele assim, nos amando, nos sentindo. A noite foi ótima, mas tinha algo sério a fazer e não podia exitar. Disse do mesmo jeito que ensanhei enfrente ao espelho. Tenho a impressão que ficou até meio forçado. Mas, de todo o jeito eu fiz o que devia fazer, pena que ele não entendeu e quis derrubar o motel, mas já está tudo bem. O que me perturba é que está chegando mais perto. Não consigo mais me controlar, estou pensando demais e isso é como uma facada a cada minuto. Onde estão os esparadrapos?
Mais um dia na escola se acaba. Tento me destrair com a paisagem de chuva para não pensar...Ora, não estou mais me controlando como antes. Sinto que meu tempo está cada vez mais curto e todos já percebem. O que devo fazer? Melhor melhorar essa cara, se não mamãe percebe...
Eu ainda não contei a ela sobre o resultado dos exames. Acho melhor não contar. Se bem que, creio eu, ela não vai nem me dá bola. Ela nunca dá. Aprendi desde cedo a me virar sozinha, se não, já estava morta. Às vezes me revolto com isso, mas agora já não faz diferença. Tudo vai acabar em pouco tempo. Em pouco tempo. Maldito tempo. Queria viver tanta coisa ainda. Mas tenho que respirar, respirar.
Vi um filme hoje que me fez pensar, uma garota descobria que tinha aids e se matava para não sofrer. Achei o filme legal, pois não a colocava como uma criminosa por ter tirado a propria vida. Ela tomou veneno e o filme acabou com ela deitada no sofá. Foi bacana, teve uma música que adorei. Queria ouvir quando estiver morta. Me lembrei do Ben agora. Ele levaria embora esses pensamentos e me faria carinho nos cabelos. Mas, penso que me pareço muito com aquela garota do filme. Ela era bonita e bem puta. Mas não é nisso que me pareço com ela e sim em sua forma de pensar. Ela tomou o controle do que estava acontecendo. Acho que vou na mercearia.
Maldito vizinho intrometido. Tive que ir para casa, senão tudo estaria perdido. Comprei a corda mas não pude usá-la. Também, que burrice minha fazer isso na árvore da frente de casa. Bem, melhor assim, seria bem doloroso mesmo... O que eu faço? Não quero morrer como um rato nogento, então, veneno não. Huum. Quer saber? Vou deixar pra lá. Liguei a tv e tentei me destrair. Acordei com um tapa de mamãe, mandando eu ir para o quarto que ela tinha cliente na porta. Enquanto andava para o meu quarto, vi uma revista com uma matéria na capa "Manual do suicida", peguei e li deitada na cama. O leite já tinha acabado. Tomei a garrafa toda e não podia pegar mais. A maldita matéria só falava da família e blá blá blá.
Resolvi sair. Tomar um ar, sei lá. Não queria mais essas ideias. Andei por uns metros, já era tarde. Sentei na pracinha que estava vazia. Choveu um pouco, mas não saí dalí. Comecei a cantar "November Rain" dos Guns. Não sei cantar inglês direito, mas eu engano. Quando estava mais ou menos na parte "And it's hard to hold a candle/ In de cold november rain", apareceram três caras. Vieram por trás de mim e me agarrarm...Malditos estúpidos. Já não me basta a droga da doença. Tomara que eu não tenha pego nada, se bem, não faria diferença. Amanhã seria um bom dia, eu penso. Levanto dali, me limpo como posso e vou.
No caminho pra casa, pensei em utopias. Nos livros de filosofia, vi o significado. Sociedades perfeitas... Deus, a quem quero enganar? Meu assunto é futebol. Mas agora, minha cama está a minha espera. Era melhor eu ter ficado lá, sem leite mesmo. Não precisava ter passado por isso. Já foi, já se consumou e só me resta esquecer. Mamãe ainda estava com seu cliente em seu quarto, resolvi não fazer barulho. Fui ao banheiro, tomei um banho e fui dormir. Já na cama, estava cansada, mas meus pensamentos ainda eram muitos. Demorei para pegar no sono.
Acordei serena de manhã. Tive um sonho à noite bem real. Queria realizá-lo ainda hoje. Coloquei "The scientist" de coldplay e fui tomar café. Escutei a música o dia todo. Passei o resto da manhã no meu quarto e o começo da tarde no sofá, assistindo um pouco de tv. Já estava chegando a hora da realização do tal sonho. A música ainda tocava quando fui me trocar. Não levei nada além do dinheiro da passagem. Passei pela rua em que sempre vivi com o espírito leve. Olhei cada detalhe e sorri. Simplesmente sorri. As mesmas pessoas, os mesmos carros e os mesmos cachorros. Tudo como teria que ser. "The scientist" ainda estava na minha cabeça. O ônibus demorou um pouco, mas nada me afetaria hoje. A viagem toda eu fui observando as pessoas em suas vidas. Andavam apressadas, enquanto eu, estava calma, leve. Minha parada estava chegando.
Desci e fui direto para a areia. Sentir o quentezinho nos meus pés foi bom, muito bom. A areia fofa e ainda meio quente. O pôr-do-sol acontecia atrás de mim. Sentei-me e esperei um pouco. Sentir o cheiro da água do mar foi relaxante. Estava tudo tão calmo, parecia até câmera lenta naquele momento. As ondas indo e vindo, quebrando na areia. A espuma branquinha... E logo atrás, toda aquela imensidão. Era o visual perfeito. O sol já não estava no céu, que só tinha o brilho do crepúsculo, era o momento certo. Passo a passo a caminho do mar. Little by little. E assim cheguei próximo às ondas. A água estava morna, e a maré estava enchendo, quase fui arrastada, mas consegui me manter firme. Fui indo cada vez mais para o fundo, as ondas estavam bem fortes. Respirei fundo e mergulhei. Tentei ir o mais fundo que pude. Em um certo momento, aspirei com toda a força a àgua salgada para dentro dos meus pulmões. Foi doloroso no começo, meu corpo pesou e eu fui parar no fundo. Senti a areia em minhas costas, era tudo tão suave. Vi o brilho da superficie lá encima. Comecei a cantar. Já estava quase acabando, porque o sono já estava vindo. Eu balançava com a corrente submersa. Já não sentia mais quase nada do meu corpo. Já fazia parte do mar.