A depressão tem me feito visitas. Neste texto a seguir, coloquei vários dos versos que ela me inspirou, como a montar uma colcha de retalhos. Vejamos quando tudo (e se) terminar.
A dor dele era escondida, disfarçava bem com seus altos sorrisos e graça. Arrancava gargalhadas do seu meio, dava a paz que não tinha, ansiava o alento que nunca poderia ter. Os passos, acompanhados, eram firmes. Na liberdade da solidão, a postura caía, a cabeça pesava e os pés mais pareciam estar numa ré da qual não queria sair.
Em casa, ao espelho, era menor que um grão de arroz. O
quarto se agigantava cada vez que a porta era fechada. Ao tilintar do giro da
chave, toda a sua falsa força desmoronava, como uma barragem que estoura e
deixa fluir todo o rio furioso atrás dela. Atrás dele havia tristeza. Atrás
dele, havia todas as lágrimas do mundo.
Os olhos, coitado, tinham dois grandes vãos que contornavam
suas olheiras de nascença. Duas valas abertas pelas lágrimas quentes. Tão
quentes, mas tão quentes, que seu rosto era marcado por cicatrizes de terceiro
grau. Sabe, eram feitas de dor. Dor queima, assim como o amor. Amor ele não tinha,
mas tinha as cicatrizes de incontáveis queimaduras.
Até o ar lhe faltava. Ele expirava sua dor como um fumante
que repele seu vício, mas cuja boca tornou-se uma chaminé. Ele via a si mesmo
como um fumante compulsivo por expulsar fumaça. Seu fôlego expelido,
preto-piche, perdendo o pouco de vida que custava a assegurar. Dizem que a dor
é negra; às vezes queima, às vezes é cruelmente indolor. A dor, pois,
apropriou-se de seus pulmões, inebriou sua postura e surrupiou muito do ar que
consumia, deixando apenas a fumaça escura e definhada. Estava morrendo aos
dias, perdendo muito ar e excedendo a dor. Tanto que só podia expelir o excesso
do excesso, e portanto, era a fumaça mais densa que já vira.
Deus, nosso Senhor, tão misericordioso, foi complacente com
sua dor. O tempo fechou-se em cinza e o Sol se escondeu para que não zombasse
da sua angústia. Enquanto seus dias passaram às lágrimas, mascaradas pela porta
sempre fechada do quarto, lá fora passou-se à chuva. Os céus choraram com ele
durante aquela semana de agonia. Seus bramidos de aflição foram sufocados por
trovões e as lágrimas foram condensadas à chuva. Ele sentiu-se acalentado,
sentiu-se parte do mundo.
Após todo o temporal, num impulso instintivo para
aquecer-se, seguiu para onde o Sol se recolhia. O frio não o acompanhou por
algum tempo. Assim, pode ver por uns instantes a sua antiga casa. E o céu, o
mar, o verde, as cores. Mas logo atrás estava o breu a puxar-lhe. Traçou,
então, uma linha com um giz azul. Linha tênue, essa, que separou dois ambientes
tão distintos. Do lado esquerdo, estava o inverno eterno, que o sugava. Do lado
direito, estava a vida, que ele almejava. Em diante, ele tentou andar sobre
aquela linha, pois não queria morrer de frio e sabia que a vida colorida não o
aceitaria totalmente. Preferiu acima do muro. A linha tênue de giz azul gravada
como a dividir dois territórios (e assim o era) tornou-se um caminho que ele
começou a seguir. Porém, era uma corda bamba, na verdade. Ele estava caminhando
entre a morte e a vida. Uma o puxava e a outra o repelia. Esta ele queria, a
outra ele abominava. Numa batalha tão desigual, esticava apenas o braço direito
– se pendesse, que fosse à vida.
Por aquelas bandas, os corredores atravessavam a linha de
chagada pela surpresa. Mal sabiam quando as pernas estancariam, era tudo muito
de repente. E a inércia em que se apresentava o pôr-do-sol tirava-lhe a
determinação. Nada era como antes. As cores eram apenas cores. A poesia o
deixara. Decidiu, então, perpendicularmente à linha de giz azul, traçar com giz
branco sua própria linha de chegada, já que o horizonte não atendeu ao seu
apelo. Traçou-a com tanta força, que teve quase um palmo de espessura. Acima,
gravou com mais força ainda: CHEGADA.
Dessa mesma forma, letras garrafais, enormes. Mesmo que por brincadeira,
resolveu deleitar-se com aquela visão tão consoladora. Deitou-se naquele chão
marcado pelas duas linhas mais simbólicas que já vira, olhou para cima, na
esperança fajuta de encontrar a poesia que o largara naquele breu sem fim.