domingo, 7 de setembro de 2014

Retalhos de Uma Depressão.



A depressão tem me feito visitas. Neste texto a seguir, coloquei vários dos versos que ela me inspirou, como a montar uma colcha de retalhos. Vejamos quando tudo (e se) terminar.

A dor dele era escondida, disfarçava bem com seus altos sorrisos e graça. Arrancava gargalhadas do seu meio, dava a paz que não tinha, ansiava o alento que nunca poderia ter. Os passos, acompanhados, eram firmes. Na liberdade da solidão, a postura caía, a cabeça pesava e os pés mais pareciam estar numa ré da qual não queria sair.
Em casa, ao espelho, era menor que um grão de arroz. O quarto se agigantava cada vez que a porta era fechada. Ao tilintar do giro da chave, toda a sua falsa força desmoronava, como uma barragem que estoura e deixa fluir todo o rio furioso atrás dela. Atrás dele havia tristeza. Atrás dele, havia todas as lágrimas do mundo.
Os olhos, coitado, tinham dois grandes vãos que contornavam suas olheiras de nascença. Duas valas abertas pelas lágrimas quentes. Tão quentes, mas tão quentes, que seu rosto era marcado por cicatrizes de terceiro grau. Sabe, eram feitas de dor. Dor queima, assim como o amor. Amor ele não tinha, mas tinha as cicatrizes de incontáveis queimaduras.
Até o ar lhe faltava. Ele expirava sua dor como um fumante que repele seu vício, mas cuja boca tornou-se uma chaminé. Ele via a si mesmo como um fumante compulsivo por expulsar fumaça. Seu fôlego expelido, preto-piche, perdendo o pouco de vida que custava a assegurar. Dizem que a dor é negra; às vezes queima, às vezes é cruelmente indolor. A dor, pois, apropriou-se de seus pulmões, inebriou sua postura e surrupiou muito do ar que consumia, deixando apenas a fumaça escura e definhada. Estava morrendo aos dias, perdendo muito ar e excedendo a dor. Tanto que só podia expelir o excesso do excesso, e portanto, era a fumaça mais densa que já vira. 
Deus, nosso Senhor, tão misericordioso, foi complacente com sua dor. O tempo fechou-se em cinza e o Sol se escondeu para que não zombasse da sua angústia. Enquanto seus dias passaram às lágrimas, mascaradas pela porta sempre fechada do quarto, lá fora passou-se à chuva. Os céus choraram com ele durante aquela semana de agonia. Seus bramidos de aflição foram sufocados por trovões e as lágrimas foram condensadas à chuva. Ele sentiu-se acalentado, sentiu-se parte do mundo.
Após todo o temporal, num impulso instintivo para aquecer-se, seguiu para onde o Sol se recolhia. O frio não o acompanhou por algum tempo. Assim, pode ver por uns instantes a sua antiga casa. E o céu, o mar, o verde, as cores. Mas logo atrás estava o breu a puxar-lhe. Traçou, então, uma linha com um giz azul. Linha tênue, essa, que separou dois ambientes tão distintos. Do lado esquerdo, estava o inverno eterno, que o sugava. Do lado direito, estava a vida, que ele almejava. Em diante, ele tentou andar sobre aquela linha, pois não queria morrer de frio e sabia que a vida colorida não o aceitaria totalmente. Preferiu acima do muro. A linha tênue de giz azul gravada como a dividir dois territórios (e assim o era) tornou-se um caminho que ele começou a seguir. Porém, era uma corda bamba, na verdade. Ele estava caminhando entre a morte e a vida. Uma o puxava e a outra o repelia. Esta ele queria, a outra ele abominava. Numa batalha tão desigual, esticava apenas o braço direito – se pendesse, que fosse à vida. 
Por aquelas bandas, os corredores atravessavam a linha de chagada pela surpresa. Mal sabiam quando as pernas estancariam, era tudo muito de repente. E a inércia em que se apresentava o pôr-do-sol tirava-lhe a determinação. Nada era como antes. As cores eram apenas cores. A poesia o deixara. Decidiu, então, perpendicularmente à linha de giz azul, traçar com giz branco sua própria linha de chegada, já que o horizonte não atendeu ao seu apelo. Traçou-a com tanta força, que teve quase um palmo de espessura. Acima, gravou com mais força ainda: CHEGADA.  Dessa mesma forma, letras garrafais, enormes. Mesmo que por brincadeira, resolveu deleitar-se com aquela visão tão consoladora. Deitou-se naquele chão marcado pelas duas linhas mais simbólicas que já vira, olhou para cima, na esperança fajuta de encontrar a poesia que o largara naquele breu sem fim.