sábado, 5 de abril de 2014
Castin, do Cristal Quebrado (A Sociedade dos Falsos Sátiros)
Havia um
lugar, perdido em algum mundo, em algum ponto do espaço-tempo, que existia uma
sociedade inteira de seres primitivamente evoluídos. Essa sociedade estava
afundada numa enorme cratera cavada pelos ancestrais de seus ancestrais. Sua
cultura era demasiadamente estagnada; desde eras primordiais que os costumes
estavam petrificados numa mesmice passada a cada nova geração.
Numa habitação
simples, na periferia daquela cratera imensa, um clã festejava o nascimento de
sua cria. Mais um membro chegara ao mundo, e para a alegria dos presentes,
seria um detentor de cristal. Havia um costume naquele lugar que certos
nascidos eram presenteados com cristais, que o sortudo indivíduo carregaria
pelo tempo que tivesse em vida. Toda aquela sociedade estava estruturalmente
moldada numa pirâmide, em cujo topo estavam esses seres de grande dádiva. O
bastão de cristal era o símbolo máximo de status dominante em toda a cratera.
Castin nascera
cercado de muitos mimos. Seu cristal fora colocado acima de onde dormia, para
que fosse visto por todos, adorado e idolatrado como um símbolo divino. Elogios
eram feitos à pequena cria, tão especial, desde cedo, para que entendesse seu
valor perante a comunidade. Toda a
família estava incumbida de ensinar cuidadosamente ao pequeno Castin a
simbologia daquela haste mineral que ele perpetuamente carregaria. Trataram de
mostrar-lhe o poder emanado daquele pedaço de pedra rusticamente talhado e
moldado. Que ter aquela pedra significava obediência às leis que a cercava;
muita responsabilidade, sem dúvida. Todos os mandamentos estavam fundamentados
em tempos imemoriais que as eras carregaram até ele. Que a maior desonra para
um detentor de cristal era perdê-lo e assim trazer a desgraça para ele próprio
e todo o seu clã. O cristal teria que sobreviver com ele, intacto, entranhado
na sua história e norteando todas as suas ações. Aquele cristal teria de ser
defendido com a própria vida, caso preciso fosse.
Castin
cresceu aprendendo a conviver com o cristal. Seus familiares forjaram, conforme
seu desenvolvimento, todo o costume necessário para que nenhum esforço fosse
perdido e acabassem zombados perante toda a comunidade. Certo dia, Castin
estava a brincar nas terras de sua família, sob a vigilância dos anciãos.
Descuidou-se poucos segundos do cristal e este foi lançado ao chão. A palmada
foi instantânea, para que aprendesse a nunca se descuidar; caso essa queda
acontecesse dali a um tempo, certamente o cristal seria fraturado e tudo
estaria perdido. Castin entendeu a bronca.
Ao
passo que evoluía, Castin adquiria a noção do quão poderoso era perante os
habitantes daquele lugar. O poder tramitava do cristal para ele e foi,
gradativamente, mudando seu comportamento na medida que entendia que para o
cristal, não havia limites. Passou a subjugar os seus iguais que não tinham
nascido com a dádiva daquele objeto fantástico. As humilhações constantes, até
mesmo para com alguns membros de seu clã, eram afagadas e até comemoradas pelos
seus criadores. Afinal, ele era um detentor de cristal, e todos precisavam
estar completamente a par disto, já que aquela sociedade estava estruturalmente
construída desta maneira. Castin aprendia o que teria que seguir para nunca
perder todo aquele poder. Era isso ou a escuridão da leviandade.
Castin
catava lenha com seus parentes, quando, de repente, um bando de gente esquisita
atravessou aquelas bandas da periferia. Os anciãos logo o chamaram e ele e seus
irmãos obedeceram, mas Castin escondeu-se e ficou a observar aquela gente
estranha de que todos tinham medo. Percebeu que muitos tacavam pedras,
insultavam aquelas pessoas que ele não compreendia. Castin ficou surpreendido e
amedrontado com todo aquele comportamento de ódio. Assustou-se com uma mão a
tocar-lhe o ombro enquanto estava distraído com toda aquela algazarra, os
anciãos o levaram para dentro da casa. Os mais velhos lhe disseram que aquela
gente eram levianos, pessoas que um dia detiveram cristais e os negligenciaram,
que trouxeram desonra e a vergonha para todo o clã, que foram banidos para as
colinas da escuridão. Aquelas pessoas eram impuras, ouvia Castin dos anciãos, e
não mereciam viver onde os olhos conseguiam ver. Os anciãos alertaram-no para
que nunca chegasse perto, pois aqueles seres repugnantes gostavam de quebrar
cristais, ou até mesmo, a comunidade poderia fazer maus julgamentos e seu
cristal, mesmo intacto, seria jogado à lama. Castin ouviu tudo pacientemente e
absorveu o que aquela mensagem queria dizer. Aquelas pessoas mereciam o que
lhes acontecera momentos atrás. Eram demônios.
As
colinas da escuridão era o lugar para onde todos os levianos eram banidos. Das
suas terras, Castin observava o sol sendo engolido por aquelas montanhas
tenebrosas de que ninguém falava amistosamente e sempre ficava apavorado com
todas as possibilidades do que pudesse haver por aquelas bandas. De certo, ir
parar naquele lugar seria terrível. Tão terrível que era o pesadelo recorrente
de Castin. Muitas foram as vezes que acordara assustado de um pesadelo intenso,
em que sua família o banira para a desgraça. Via-se sozinho, no mais completo
escuro, tendo que lidar com as mais bizarras criaturas dando-lhe sorrisos de
boas-vindas. Para aquele inferno, ele não iria. Preferia a morte.
Castin
era um membro obediente do clã, sempre estava à disposição dos anciãos para
ajudá-los. Numa certa manhã, Castin foi com os mais velhos ao mercado que
ficava ao centro da cratera. Todos estavam escolhendo os melhores alimentos,
enquanto Castin conversava com um dos vendedores. Perguntou-lhe sobre muitas
coisas e a prosa se estendeu. A companhia daquele vendedor era agradável. Ao
levantar uma pequena bolsa de condimentos para pagar ao vendedor, alguém se
aproxima dos dois e passa a apontar para eles. Era uma acusação, e Castin não
entendia o que estava acontecendo. Os anciãos logo chegaram e presenciaram a
cena, que, por sorte, era o vendedor o acusado. Acusaram-no de leviandade e que
seu cristal tinha se partido por ficar admirando o cristal de outrem, o que era
expressamente proibido. O vendedor ria, tentando disfarçar o nervosismo e usar
de sarcasmo para desviar as acusações. O pobre homem gritava que não era um
leviano e podia provar, mas relutou em mostrar seu cristal. Os presentes,
então, usaram da força para arrancar-lhe e, então, viram que o objeto estava
totalmente perdido. O farelo de cristal foi jogado ao chão, ali mesmo, na
frente de todos. Uma vergonha!
A
vida daquele homem estava perdida, mas ninguém teve o mínimo de compaixão.
Castin não entendia como aquele ordinário poderia ter a petulância de estragar
o próprio cristal. Deixar que aquele objeto de grande poder se perdesse daquela
maneira. Esquecer de tudo o que foi ensinado desde as eras primordiais para ser
jogado ao ostracismo. Castin estava incrédulo; como aquele vendedor tão gentil
pudesse ter tamanha leviandade? Castin o conhecera, mas logo pensou que,
certamente, aquele homem queria quebrar o seu cristal também. Castin tomou-se
de ódio, estendeu a mão ao chão e foi o primeiro a tacar-lhe a pedra. Foi
ovacionado. A criança já compreendia.
O
tempo foi se acomodando e a vida de Castin foi se modificando, e conforme os
muitos rituais daquela sociedade, ele crescia. Absorvia os ensinamentos como
uma planta que se nutre do seu entorno para, num futuro próximo, dar suas
flores. Castin aguardava ansiosamente cada novo passo, cada nova porta que se
abriria para ele, pelo simples fato de ser dono de uma dádiva. A estrada era
fácil, bastava ir sempre em frente, não fosse a distração com a paisagem que o
fazia tropeçar vez ou outra. A verdade verdadeira era uma só: Castin crescia com
uma erva daninha que ele não conseguia enxergar. Castin era curioso por
natureza, mesmo com sua curiosidade sendo acochada pelos arreios daquele
lugar. Castin estava desafiando um
desfiladeiro de espinhos ao permitir certos pensamentos e certos desejos.
Naquela sociedade, tudo estava comedidamente equilibrado de uma forma que nada
além do necessário seria tolerado, e disso Castin sabia bem.
Castin estava
distante. O olhar fixo no céu que adentrava o lugar pela pequena janela que
ficou a noite inteira aberta. Nem o vento moribundo que circulava pela mesma
janela era capaz de abrandar-lhe a cabeça. Castin fitava a janela com
veemência, parecia ser uma forma de fuga, quando, num horizonte próximo – a
moradia vizinha – avistou o vizinho que limpava o cristal. A fuga de Castin foi
catapultada para aquela imagem. Ouviu algo cair, mas sua distração não permitiu
que desse muita atenção para superfluidades, apenas continuou a observar aquela
cena e só se esvaiu dela quando o outro terminou seu afazer. Era a hora de
voltar à rotina, mas nada seria como antes dali em diante.
Castin pisou
em algo que o machucara. Constatou, ao olhar para o chão, que eram cacos de
alguma coisa. O desastrado quebrara algo, mas não sabia o que era. Dirigiu-se à
porta para ordenar que alguém limpasse toda aquela sujeira, quando parou
veementemente. As mãos começaram uma busca frenética pelo corpo, depois os
olhos pelos cantos do lugar e em seguida, taquicardia. Era seu cristal. Castin
voltou-se para os fragmentos da sua vida que estavam espalhados pelo chão do
quarto. Sua respiração ofegante e as batidas desesperadas em seu peito
impedia-o de raciocinar. Tentou, inutilmente, recolocar todas as peças no
lugar, enquanto suas lágrimas lavavam cada pecinha do seu destino. Tudo estava
perdido.
Desde que entendeu profundamente todos os
mandamentos a cerca de sua vida como um dominante, Castin sabia de seu destino,
mas agora o jogo tinha mudado a favor de sua desgraça. Castin recusou-se a sair
do seu recinto por muito tempo, o que causou a preocupação de seu clã, que
pensava que ele estava enfermo. Lá dentro, até a luz que vinha do dia
ofendia-lhe a honra, parecia que tudo zombava de seu triste destino. Castin
passou de uma alegria vigente a uma melancolia profunda, tanto que os pesadelos,
antes esporádicos, agora eram constantes. Sentia sua vida esvair-se e passou a
tentativa angustiante de encontrar uma maneira de ter sua garantia de vida de
novo. Aos poucos, saiu do quarto, sempre escondendo o cristal como nunca fizera
antes. Deu-se conta que ninguém perceberia, a única coisa que tinha que fazer
era se prevenir para não ser alvo de acusação, e assim, ninguém nunca
adivinharia que seu orgulho não mais existia.
Com o decorrer
das estações, Castin adquiriu mais confiança para viver com o pouco de tranquilidade
que conseguia, mas estava diferente. Desde aquela noite que passara acordado,
todos vinham percebendo a mudança de Castin, seu comportamento transformou-se.
Agora até adquiriu o hábito da gentileza para com os outros. Porém, o medo
ainda espreitava-lhe o coração, como um aviso para que não desse nenhum passo
em falso, caso contrário, seria levado ao ostracismo.
Castin deu-se
a prerrogativa de sair para encontrar-se com um meio social morava pela
vizinhança. Agora mais adulto, tinha que começar com seus relacionamentos.
Deu-se muito bem com aqueles que, certamente, também detinham cristais, essa
era uma das regras. Aqueles amigos passaram a encontrar-se cada vez mais e
Castin desenvolveu, então, suas conexões com outros clãs. O senso social de Castin
estava se apurando, inclusive, com a proximidade com outro membro daquele
bando. Castin e seu amigo desenvolveram uma conexão de clã, como se ambos
tivessem origem nos mesmos criadores.
O hábito á
habitação do amigo passou a ser rotina para Castin. Certo dia, caminhando para
a casa do amigo, Castin depara-se com seu amigo jogado ao chão. Ao se apressar
para ajuda-lo, depara-se com uma acusação. A pobre criatura estava chorando e
recusava-se a mostrar o cristal. Castin já havia visto aquela cena antes, com o
vendedor da feira. Tomado de ira, vai até o amigo que, ao vê-lo, não oferece
resistência. Castin abre a cabaça e olha de rabo de olho para o que está lá
dentro. Sua raiva se expande para os braços, caminha lentamente ao redor do seu
amigo que olha para o chão, derrotado. Questionado pelos demais presentes sobre
o conteúdo da cabaça, Castin desce a mão ao solo, pega uma pedra e arremessa na
direção ao amigo, deixando cair os cascalhos de cristal logo em seguida. Tamanha
força que usou, que o rosto daquele que foi seu amigo banhou-se de sangue. O,
agora, leviano atreveu-se a olhar para os olhos de seu algoz. Castin viu um
misto de incredulidade e raiva lavado
com o sangue daquele leviano. Castin deu às costas àquela cena deplorável e
caminhou de volta à sua moradia, parando veementemente no meio do caminho; deu-se
conta, dolorosamente, que a pedra não atingiu seu amigo, e sim, ele mesmo.
A consciência
de Castin passou de poucas preocupações sobre cautela no dia-a-dia para uma
tonelada depois do ostracismo daquele que conhecia. Ele era seu amigo, deveria
tê-lo ajudado. Mas não apenas isso, ainda existia o fato de seu mastro estar no
mesmo estado que o do leviano. Então, o que fez com que atirasse aquela pedra em
seu amigo? Medo. Sim. Medo de estar naquela mesma condição um dia; seria mais
fácil atingi-lo a se igualar a ele. Medo
de também receber uma acusação ali naquele lugar. Castin não estava preparado;
na verdade, nunca estaria. Mas o destino nem sempre está curvado às vontades.
Os ciclos do
sol foram se sucedendo e Castin destoava cada vez mais de seus iguais. A cada
momento de reflexão que passava, seu comportamento se transmutava de uma forma
desconhecida até para ele mesmo. Ao passo que compreendia cada vez mais a
realidade à sua volta, Castin obtinha um senso generalizado sobre toda a
cultura em que estava inserido. A começar pelo seu próprio dilema: ele nunca
deixou de ser ele mesmo após o cristal ser fraturado. Nada mudara desde então,
e ninguém havia percebido nada. Então, o que aquele simples objeto significaria
verdadeiramente para sua essência? Porque seu destino teria que estar atrelado
àquilo?
Castin não
percebia, mas estava adentrando num terreno perigoso. As dúvidas e os
questionamentos passaram de situações esporádicas de momentos de angústia para
a corriqueiredade da rotina. E isso era pecado, ele estava se afundando em
pecado. Certa vez, numa volta pela cratera, ficou a observar tudo o que se
passava a sua volta e cada vez mais as coisas pareciam distantes de um senso
lógico, pelo menos para ele. Havia pessoas sofrendo perante aquela pedra, havia
humilhação da dignidade de existência dos seres que não detinham a sorte de
possuir esses tais cristais; havia morte, havia destruição. De onde viria
realmente o tamanho poder daquelas pedras tão frágeis, que nem sequer
aguentavam uma queda? A resposta estava perdida num lugar que Castin não
conseguia enxergar, o que acabava o deteriorando cada vez mais rápido.
Todo o clã já
se preocupava com a metamorfose de Castin, que estava mais solícito, mais
gentil e amável. Seus traços dominadores adquiridos com o forjar de seu
crescimento foi dando lugar a atitudes mais contidas e compreensivas. O clã já
o olhava com estranheza, mas Castin não parecia se importar muito. Passava mais
tempo em seu ressinto, as lorotas ditas pelos membros de sua família lhe
perturbavam a mente. Aliás, todo aquele lugar lhe perturbava. As coisas eram
desconexas demais, a ponto de Castin achar que sua consciência estava se
deteriorando. O mundo não era mais o mesmo. Ou seria que Castin que não era?
Castin tornou-se alheio em seu próprio mundo. Sem saber, estava se entregando
ao seu próprio caminho.
Castin lutou dali
em diante para que tudo à sua volta continuasse como sempre foi, na verdade,
guerreava contra si mesmo. Porém, sua atitude solícita continuou para com os
membros de seu clã, mesmo que somente como mera figura de ajuda, sem uma maior
interação. Preferiu a solidão de seus pensamentos desformes àquele convívio
diário. Contudo, nenhuma mudança passou despercebida, ainda com todos os
esforços de Castin. Certo fim de tarde, todos estavam em volta da grande árvore
que estava assentada na frente da aldeia. Os mais novos estavam entretidos
enquanto os anciãos conversavam. Castin sentou-se numa das raízes grossas que
se protuberavam do solo e ficou a observar o céu que estava acima de sua
cabeça. Os mais novos corriam pelo arredor da aldeia enquanto Castin se
distraía em seus pensamentos. Foi chamado várias vezes para o convívio do seu
clã, mas preferiu conversar com o infinito acima de si. Por um deslize, um dos
novos que estava a correr caiu em cima de Castin, queria brincar, mas Castin
não estava para aquilo. Mas aquele peralta foi insistente, tanto que agarrou-se
a cabaça de Castin e pôs-se a correr. Uma
brincadeira inocente, claro, mas que poderia custar a vida de Castin. O pânico
mexeu as pernas de Castin, que corria como um animal a abater sua presa. Algo
em seu íntimo dizia que aquele era seu fim, bastava apenas uma contagem
regressiva. As lágrimas se esvaíam enquanto Castin via a criança abrir a cabaça
enquanto corria. O pó de cristal foi despejado no chão, bem em frente a todos
do clã. O pânico não mais o controlava, ele, então, caiu. Apenas a derrota pesava
sobre seu corpo.
A acusação
veio de seu próprio clã. Instantaneamente os dedos foram postos em direção a
Castin, que com muito custo conseguiu manter-se de pé. Ainda chorando, proferiu
palavras que eram a prova de sua leviandade, o que todos os levianos diziam.
Tentou argumentar que ele continuava o mesmo, que ainda tinha conexões com
todos de seu clã, que o amor nunca quebrara. Seu alento foram as pedras, sua
resposta foi o banimento.
Abatido,
ferido, rejeitado e desnorteado, Castin tomou único caminho para os levianos:
as colinas da escuridão. Em sua cabeça, mesmo metamorfoseada pelos últimos
tempos, Castin não poderia aceitar aquele destino. Não ele, que sempre foi
benquisto, sempre esteve em um patamar acima de todos daquela cratera. Logo ele
que sempre baniu. Até mesmo sua família o odiava agora. O amor nada valia,
então. Apenas o cristal tinha o verdadeiro valor de tudo, e seu poder de
equilíbrio na vida de Castin tinha se partido. Castin, na verdade, não existia
mais. Aquelas pedras o mataram. Faltava apenas o corpo desfalecer. Preferiu,
então, entregar-se ao único abraço que lhe ofereceria um afago minimamente aceitável
diante de sua situação: a morte. Ao por os olhos em volta de onde se
encontrava, percebeu um lugar morto, árido e cinza, cheio de árvores
petrificadas com corpos balançando pelos pescoços em seus galhos. Se aquela era
a estrada para as terras do banimento, nem queria saber o que existia nas
colinas, pensou Castin.
Preferiu não
adiar mais, procurou um bom laço dentre os corpos que balançavam. Ao passar por
um deles, assustou-se ao constatar que era seu amigo, o mesmo que ele
apedrejara tempos atrás. Então, a completude de sua desgraça chegou com a
culpa. A morte não seria um afago, e sim um destino, ele realmente era um
miserável. Mas antes, enterrou com um mínimo de dignidade o corpo do amigo que
jazia pendulado diante às cinzas do lugar, uma imagem mórbida de seu erro. Era
sua forma de redenção. E com o mesmo laço do amigo, enlaçou o próprio pescoço.
Porém, uma
pergunta atrapalhou sua contagem até a morte. Alguém estava diante dele,
questionando-o sobre o que estaria fazendo naquele galho de árvore tão alto. Castin
abriu os olhos, mas preferiu não responder àquele que o atrapalhava. Novamente
foi questionado, dessa vez com perguntas absurdas, como quanto valia uma vida,
ou o que era o amor, ou ainda, para onde iriam as consciências depois da morte.
Castin ficou aborrecido com aquela criatura inconveniente que, certamente, era
um leviano – pode perceber pelo jeito como se portava. A abominação ainda o
causava repulsa àquele que tentava de alguma forma um contato com Castin. Mesmo
agora estando no mesmo patamar que aquele ser estranho, Castin sentia-se
enojado de sua presença, preferiu ignorá-lo e procurar outro lugar para cumprir
sua sina.
Contudo, seus
passos foram perseguidos pelo tal leviano. Ele reclamava, de longe, a corda que
Castin carregava nas costas, dizia querer devolve-la ao dono. Dizia que aquela
corda não pertencia a Castin e não era de bom agouro roubar pertences dos
mortos. As palavras daquele imundo irritante se espalhava pela estrada, e
Castin se aborrecia. Castin sentia-se invadido por aquela presença pertinaz.
Como conseguiria cumprir sua pena com aquela alma cheia de ladainha
perseguindo-o? Nenhuma palavra saiu de Castin em resposta a qualquer
questionamento insano ou comentário parvo. Sorrateiramente, foi questionado do
porque enterrou o legítimo dono da corda que carregava. Os passos de Castin
continuaram. Tão logo veio outra, que sentimento o fez tomar aquele gesto.
Castin não esboçou nada. Ainda rente, instigou a inércia de Castin ao apontar suas
cicatrizes e perguntar se a dor teria sido a mesma que o cadáver sentiu. Castin
estancou. O leviano, então, apresentou-se. Disse seu nome em alto e bom som,
pausadamente: HERMAFE.
Hermafe, o
leviano, aflorou o sentimento de culpa que estava retido apenas na redenção de
Castin. Culpa não só pela morte do amigo, mas pelas próprias cicatrizes que acusavam
a razão por estar naquele lugar. Castin, agora, de nada valia, e ele bem sabia.
Foi estúpido ao descurar o cristal e com isso negligenciou a própria
existência. Castin tinha tudo e perdera muito mais. As leis que cercavam sua
vida não mais existiam, sua essência se esvaiu e a fome do alívio final doeu em
seu espírito. Castin deu-se a prerrogativa da redenção de um erro, mas não
podia conceber o perdão a si mesmo.
Encontrou,
enfim, uma árvore alta o suficiente. Seca e petrificada, não destoava em nada
da paisagem; tão morta quanto o entorno, tão morta quanto Castin. Hermafe
seguiu-o. Pouco antes do salto fatal, questionou-o se poderia fazer uma última
pergunta. O silêncio de Castin foi conivente. Hermafe, então, o fez olhar um
pouco para trás e mostrou-lhe de onde Castin viera. A cratera não estava tão longe
assim daquele lugar. Perguntou se, ao menos, Castin sabia a história do lugar
tão amado. A expressão de curiosidade no rosto de Castin fez Hermafe prosar uma
lenda antiga, que falava dos ancestrais. Sem muito sentido, afinal. Eram outros
tempos. Hermafe pediu, então, uma noite. Disse que antes de morrer, ele lhe
concederia um último passeio pelos arredores da cratera.
A surdina da
noite os ajudou a andar despercebidos. Enquanto caminhavam, Hermafe observou o
quanto o cheiro era diferente do lugar em que encontrou Castin. Aquele lugar
era uma necrópole, mas a cratera fedia a enxofre. A necrópole exalava o cheiro
daqueles que procuraram o próprio destino, disse Hermafe, diferente do odor da
ignorância. Castin não compreendia as
palavras de Hermafe, porém, sentia que havia algo a descobrir antes de seguir
em frente. O passeio continuou até antes da luz retornar. Hermafe mostrou a
Castin que aquela cratera de nada servia, apenas sufocava os indivíduos num
espaço ínfimo e fétido, obrigando-os a uma vida estreita. Apontou, após, para o
céu e mostrou-lhe que a existência requer espaço que só pode ser concebido pela
liberdade – o que, definitivamente, não existia naquele buraco putrefo. Hermafe
bradou que aquele lugar abrigava a sociedade dos falsos sátiros, e depois riu,
em tom de deboche. Os sentidos das palavras de Hermafe chegavam aos poucos a
Castin, mesmo que incompletos. As palavras pareciam se enlaçar com o que a
curiosidade inocente de outrora lhe permitiu perceber. E essa dúvida foi a
garantia de continuar vivo. Castin aceitou a ajuda de Hermafe para desvendar a
verdade, pelo menos até estar ciente de tudo.
O tempo seguiu
seu curso, e Hermafe cuidou de Castin durante todo o tempo. Toda manhã, descia
ao vale da morte para alimentar e fazer companhia a Castin. Certo dia, Hermafe
chegou ao vale com uma bolsa pendurada no pescoço. Hermafe, então, mostrou a
Castin uma réplica dos idolatrados cristais. Disse-lhe que poderia voltar ao
clã com uma simples desculpa de que o cristal partido não era o de Castin,
realmente. Disse-lhe que tudo voltaria a ser como antes, bastava Castin tomar o
cristal para si e ir embora. Comovido com aquele gesto, Castin estendeu a mão
para pegar o tesouro que Hermafe lhe concedia. Por um momento, a felicidade
voltara, antes de se dissipar como fumaça. Hermafe deixou a haste de cristal
cair. A ira tomou Castin instantaneamente, que instintivamente, pulou em cima
do leviano almejando degolá-lo, tamanha insolência daquele imundo. Com um
sorriso sarcástico, Hermafe mostrou uma infinidade de réplicas de cristais.
Castin hesitou. Aos risos, Hermafe
tentou clarear as ideias de Castin, mostrar-lhe que nada voltaria a ser como
antes, pelo simples fato de Castin ter se transfigurado em outra pessoa. E que,
indiscutivelmente, aquele cristal não representava mais nada, Castin já seguia
seu próprio caminho. Mais uma vez, Hermafe convidou o amigo para uma volta.
Atravessaram,
então, o vale até encontrar uma rocha alta o suficiente para os objetivos de
Hermafe. Daquele lugar, tinham uma visão geral de toda a cratera e, por
coincidência, Castin já sentia o cheiro ruim do buraco que deixara para trás.
Hermafe aponta para uma habitação próxima, onde havia uma festa; mais um
detentor de cristal viera ao mundo. Espontaneamente, Castin sorriu, talvez
pelas lembranças da vida que teve um dia. Hermafe, então, questiona-o se
conseguia diferenciar aquela nova cria dele mesmo. Pergunta curiosa, pensou
Castin, mas ao encontrar a resposta, esta foi não. Não havia diferença, Castin
havia passado por tudo aquilo. Um pouco mais a frente, um dominante castigava
um desobediente que não detinha cristal de maneira feroz. Hermafe questionou-o
com a mesma pergunta, e a resposta também foi não. Castin também exercia seu
papel dominante naqueles que não tiveram a dádiva. Não tão longe dali, um
leviano sofria as consequências do banimento. Hermafe observou que o tal
leviano só queria um pouco de comida, que nenhum mal estava a fazer para
qualquer um que estava ao redor. Novamente a mesma questão, e Castin,
dolorosamente, respondeu ‘não’.
Ao continuar a
analisar as coisas junto a Castin, Hermafe deu-lhe novas respostas.
Curiosamente, Hermafe explanou que não questionou-o sobre o Castin de antes, e
sim, o Castin de agora. O Castin de agora, o mesmo que exibia cicatrizes de seu
banimento, não se parecia com aquela cria, porque agora, seu destino seria unicamente
de responsabilidade dele. Nem ao menos se parecia com aquele dominador, porque
suas atitudes foram transformadas pela dor e pela sabedoria que adquirira com
sua desgraça, antes mesmo de tudo se concretizar. Contudo, um dia encontrará a
força para enfrentar novamente as pedras que chegarão ao ter que pisar
novamente naquela cratera, assim como aquele leviano que vira momentos antes. Apesar
da verdade descrita, Hermafe sentia que Castin ainda relutava em aceitar seu
destino, que estava à espera.
Houve um dia
que Hermafe não desceu ao vale da morte para amparar Castin. O céu tinha
amanhecido diferente. Castin aguardou a vinda do amigo por um momento, porém,
este não veio. Castin subiu a rocha que assentou as ideias de Hermafe tempos
antes, as mesmas que o fizeram refletir durante dias e noites. Do alto da rocha
era possível vislumbrar todo aquele buraco fétido a que um dia pertencera.
Castin percebeu que tudo na cratera estava estagnado numa mesmice que, agora,
podia enxergar claramente. Ninguém era dono do seu destino. Desde o nascimento
ao túmulo, a liberdade era usurpada em nome de um organismo maior: a cultura
arcaica e estúpida dos cristais. Tudo estava subjugado à maldita pedra que
nenhum poder possuía, apenas restringia a consciência a um estado de servidão
perpétua, tanto para os abençoados quanto para o resto. E que a liberdade
custara caro não só para ele; a liberdade estava entrevada à mão da morte e à
destruição e à infelicidade. O pesar foi dando lugar à confiança. Perdido no
devaneio de filosofar sobre sua antiga condição, Castin percebeu que Hermafe
deixara cair um cristal de sua bolsa e que lá estava, esquecido, próximo à
rocha. Era interessante a Castin como todo o significado daquela pedra mudara.
A risada abafada pela dor foi espontânea. Pegou o cristal e deixou cair, de
propósito, para saciar sua vontade por liberdade. Aquele cristal era tão frágil
que não aguentou sequer uma única pancada. Castin ficou a olhar todas aquelas
pedrinhas brilhantes no chão, que a luz do dia as transformavam em pequenas
estrelas. Recolheu o quanto pode e atrelou os cascalhos ao próprio corpo. A dor
foi transfigurada em beleza; suas cicatrizes, agora, brilhavam.
O dia
encheu-se de beleza pelo brilho vindo de Castin. Ele mesmo estava entretido com
o estandarte em que se transformara. Parecia um prêmio, e a luz do dia o
brindou. Brindou a dor de seu passado e as possibilidades de seu futuro,
unicamente seu, a partir daquele instante. Castin seguiu a luz do dia para que
não perdesse a festa em que o próprio corpo havia se transformado. A cada raio
de luz que se escondia, Castin dava um passo à frente para que pudesse
aproveitar a beleza daquele dia, até que seus pés não aguentassem acompanhar a
luz. Castin deixou-se hipnotizar pela beleza que emanava, seguiu aonde ela o
levou, sua inocência estampada no sorriso permitiu que seus passos o levassem
até o topo daquela montanha. Mal acreditou quando deu-se conta. A luz o levara
para o leito onde dormia: as colinas da escuridão. Havia paradoxo naquele
lugar. Como poderia um lugar de trevas ser o berço da luz? A luz seria, então,
as trevas? Nada ali era conforme lhe fora contado.
Hermafe
deu-lhe as boas-vindas com um sorriso amistoso e cordial, nada da bestialidade
antes sonhada em pesadelos terríveis. Apresentou a Castin o lugar, que
respirava liberdade. Havia muitos caminhos, incertos pela natureza de quem os
fizeram. Havia todo o tipo de pessoas, com os mais diferentes costumes.
Estranhamente, percebeu que a leviandade se atrelava aos que nunca detiveram
cristais, apenas deram de ombros as verdades impostas pela cratera. Aquelas
terras eram férteis, tão férteis que havia uma infinidade de árvores que davam
frutos, tão singulares e únicos. Os pés de Castin sentiram aquele chão, o que o
fez sentir-se diferente. Eram as raízes, o desejo de, também, frutear.
Muito após sua
chegada, Castin desceu com Hermafe à cratera em busca de comida. Houve
retaliações à presença deles. Castin foi hostilizado por muitos, alguns deles,
membros de seu antigo clã – conseguiu
identificar. A ira daqueles que não compreendiam a beleza do corpo de Castin,
que o tinha como heresia, materializaram-se nas pedras. Foram perseguidos até o
vale da morte, tornaram-se alvo de pedradas novamente. De repente, Castin
estanca e Hermafe pede para que não pare. Castin tentou, contudo, as lágrimas
foram mais fortes. Incrédulo, Hermafe viu Castin encarar aquela multidão e
dirigir-se até a mesma rocha que um dia estiveram. Castin, então, em meio às pedras que lhe eram jogadas,
respondeu: “E me colocaram à margem...”. E sentando-se na rocha, continuou: “É
aqui mesmo que eu quero ficar!”.
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