sexta-feira, 2 de abril de 2010

O voo da borboleta azul.

Lembro que deixei aquele maldito papel cair. Eu já estava preparada, então, o que acontece comigo? Tô deitada na cama e meu coração parece que vai explodir de tanta aflição. Prometi a mim mesma que, independentemente do resultado, iria viver da mesma forma que sempre vivi. Sem essas paráfrases das ideias de falsos poetas. "Viver como se fosse o último dia". Acabei me perguntando sobre essa frase. "Viver como se fosse o último dia"... Será mesmo que valeria apena no meu caso? Acordar e lembrar dessa maldita doença me consumindo pouco a pouco e sabendo que logo estaria morta? Creio que não. Não foi isso que sonhei pra mim. Eu sonhava em me casar e ser uma Amélia da vida. Estranho eu sonhar com isso. Sempre fui meio menino. Jogava bola e andava de bicicleta até os 14 anos. Já fazem 3 que não faço mais isso. Sinto falta. Mas a vida continua e preciso de um copo d'água.
Não quero que essas lágrimas que queimam em meus olhos caiam pelo meu rosto. Assim, terei que enxugá-las. E não quero isso. Queria ter coragem para ler aquele papel de novo, mas, é melhor deixar pra lá. Não vai fazer diferença. A rotina me espera. Amanhã vou à escola. Tenho que acabar tudo com o Benjamin, não posso deixá-lo sofrer com essa bomba. Ele tem sido um ótimo namorado, apesar de não sentir nada muito grande por ele. Apenas carinho e afeição. Ele me acolhe em seus braços e afaga meus cabelos quando brigo com mamãe. Às vezes tenho raiva dela. Ela sai à noite pra colocar comida na mesa e sinto como se eu fosse um peso na vida dela. Mas Benjamin diz que não, que todos os pais amam seus filhos. E o que ele diria de Josef Fritzl? Bem, o fato é que não sei como ele reagirá. Sei que ele gosta de mim. É muito romântico comigo e me protege sempre. É tão chato fazer isso. Era bom que eu sumisse agora, e mandasse tudo isso pro espaço. Mas não posso.
O tempo passou rápido e o intervalo já estava perto. Não saberia como abrir a boca e nem como mentir. Seria bom mentir? Hum... Acho melhor ir para a biblioteca. Vou ler um pouco. Deve ter algum livro engraçado lá. É engraçado como as pessoas me olham. Talvez seja minhas roupas ou o meu jeito de andar. Será que elas me olhariam assim se soubesse do meu câncer? De novo esses pensamentos... Tenho que me disciplinar. Estou vivendo normalmente. Mas, onde estarão os livros de piadas? Será que teria esse tipo de livro numa biblioteca de uma escola? Acho melhor não perguntar, vai que riam de mim e eu vire a chacota da escola...
Abri os olhos e estava na enfermaria. Maria veio me explicar o que aconteceu. Ela foi cuidadosa comigo desde que cheguei na escola. Já fazem 8 anos eu creio. Eu sempre me metia em brigas e ela cuidava de mim. Tem um instindo maternal muito bonito. Ela chegou perto e me disse que eu tinha desmaiado na biblioteca. Me perguntou se eu estava me alimentando bem. Respondi que sim, mesmo sabendo que essa resposta não saiu com tanta verdade pra enganá-la. Ah, eu tenho que viver como sempre vivi, essa é minha meta, não é mesmo? O que importa se forem mais 1, 2 ou 6 meses? Todo mundo vai ter que ir mesmo. O melhor é fazer o que sempre fiz, assim, não suspeitarão de nada.
Comecei a perceber hoje que meu corpo está indo ralo abaixo. Não aceitei fazer a quimioterapia. Não me deram boas chances e minha mãe não teria dinheiro pra pagar. Mas tenho que engordar, se não, começarão a falar. Vou comer alguma coisa. Algo que me deixe forte e um pouco mais gorda. Não muito, claro. O que seria bom pra engordar? Quase levei um susto ao me olhar no espelho agora. Preciso mesmo engordar. Não irei à escola nas próximas duas semanas. Está decidido.
Boas semanas estão sendo essas. Acho que consegui engordar um pouco e pegar um pouco mais de cor. Estava muito pálida e magra. Amanhã vou a escola. Tenho que terminar com o Benjamin. Me veio na cabeça em ser grossa e rude, dizer que ele não é homem pra mim. Mas penso no dia em que partir. Ele certamente ficará chatiado. Acho bom ter a última transa e depois terminar. Isso, farei isso. Agora, o que dizer? Bem, direi que quero um tempo para ficar só, pensar em mim um pouco. Ele vai compreender.
Em poucas horas estava no motel com Ben. Foi um pouco estranho, porque sabia que nunca mais estaria com ele assim, nos amando, nos sentindo. A noite foi ótima, mas tinha algo sério a fazer e não podia exitar. Disse do mesmo jeito que ensanhei enfrente ao espelho. Tenho a impressão que ficou até meio forçado. Mas, de todo o jeito eu fiz o que devia fazer, pena que ele não entendeu e quis derrubar o motel, mas já está tudo bem. O que me perturba é que está chegando mais perto. Não consigo mais me controlar, estou pensando demais e isso é como uma facada a cada minuto. Onde estão os esparadrapos?
Mais um dia na escola se acaba. Tento me destrair com a paisagem de chuva para não pensar...Ora, não estou mais me controlando como antes. Sinto que meu tempo está cada vez mais curto e todos já percebem. O que devo fazer? Melhor melhorar essa cara, se não mamãe percebe...
Eu ainda não contei a ela sobre o resultado dos exames. Acho melhor não contar. Se bem que, creio eu, ela não vai nem me dá bola. Ela nunca dá. Aprendi desde cedo a me virar sozinha, se não, já estava morta. Às vezes me revolto com isso, mas agora já não faz diferença. Tudo vai acabar em pouco tempo. Em pouco tempo. Maldito tempo. Queria viver tanta coisa ainda. Mas tenho que respirar, respirar.
Vi um filme hoje que me fez pensar, uma garota descobria que tinha aids e se matava para não sofrer. Achei o filme legal, pois não a colocava como uma criminosa por ter tirado a propria vida. Ela tomou veneno e o filme acabou com ela deitada no sofá. Foi bacana, teve uma música que adorei. Queria ouvir quando estiver morta. Me lembrei do Ben agora. Ele levaria embora esses pensamentos e me faria carinho nos cabelos. Mas, penso que me pareço muito com aquela garota do filme. Ela era bonita e bem puta. Mas não é nisso que me pareço com ela e sim em sua forma de pensar. Ela tomou o controle do que estava acontecendo. Acho que vou na mercearia.
Maldito vizinho intrometido. Tive que ir para casa, senão tudo estaria perdido. Comprei a corda mas não pude usá-la. Também, que burrice minha fazer isso na árvore da frente de casa. Bem, melhor assim, seria bem doloroso mesmo... O que eu faço? Não quero morrer como um rato nogento, então, veneno não. Huum. Quer saber? Vou deixar pra lá. Liguei a tv e tentei me destrair. Acordei com um tapa de mamãe, mandando eu ir para o quarto que ela tinha cliente na porta. Enquanto andava para o meu quarto, vi uma revista com uma matéria na capa "Manual do suicida", peguei e li deitada na cama. O leite já tinha acabado. Tomei a garrafa toda e não podia pegar mais. A maldita matéria só falava da família e blá blá blá.
Resolvi sair. Tomar um ar, sei lá. Não queria mais essas ideias. Andei por uns metros, já era tarde. Sentei na pracinha que estava vazia. Choveu um pouco, mas não saí dalí. Comecei a cantar "November Rain" dos Guns. Não sei cantar inglês direito, mas eu engano. Quando estava mais ou menos na parte "And it's hard to hold a candle/ In de cold november rain", apareceram três caras. Vieram por trás de mim e me agarrarm...Malditos estúpidos. Já não me basta a droga da doença. Tomara que eu não tenha pego nada, se bem, não faria diferença. Amanhã seria um bom dia, eu penso. Levanto dali, me limpo como posso e vou.
No caminho pra casa, pensei em utopias. Nos livros de filosofia, vi o significado. Sociedades perfeitas... Deus, a quem quero enganar? Meu assunto é futebol. Mas agora, minha cama está a minha espera. Era melhor eu ter ficado lá, sem leite mesmo. Não precisava ter passado por isso. Já foi, já se consumou e só me resta esquecer. Mamãe ainda estava com seu cliente em seu quarto, resolvi não fazer barulho. Fui ao banheiro, tomei um banho e fui dormir. Já na cama, estava cansada, mas meus pensamentos ainda eram muitos. Demorei para pegar no sono.
Acordei serena de manhã. Tive um sonho à noite bem real. Queria realizá-lo ainda hoje. Coloquei "The scientist" de coldplay e fui tomar café. Escutei a música o dia todo. Passei o resto da manhã no meu quarto e o começo da tarde no sofá, assistindo um pouco de tv. Já estava chegando a hora da realização do tal sonho. A música ainda tocava quando fui me trocar. Não levei nada além do dinheiro da passagem. Passei pela rua em que sempre vivi com o espírito leve. Olhei cada detalhe e sorri. Simplesmente sorri. As mesmas pessoas, os mesmos carros e os mesmos cachorros. Tudo como teria que ser. "The scientist" ainda estava na minha cabeça. O ônibus demorou um pouco, mas nada me afetaria hoje. A viagem toda eu fui observando as pessoas em suas vidas. Andavam apressadas, enquanto eu, estava calma, leve. Minha parada estava chegando.
Desci e fui direto para a areia. Sentir o quentezinho nos meus pés foi bom, muito bom. A areia fofa e ainda meio quente. O pôr-do-sol acontecia atrás de mim. Sentei-me e esperei um pouco. Sentir o cheiro da água do mar foi relaxante. Estava tudo tão calmo, parecia até câmera lenta naquele momento. As ondas indo e vindo, quebrando na areia. A espuma branquinha... E logo atrás, toda aquela imensidão. Era o visual perfeito. O sol já não estava no céu, que só tinha o brilho do crepúsculo, era o momento certo. Passo a passo a caminho do mar. Little by little. E assim cheguei próximo às ondas. A água estava morna, e a maré estava enchendo, quase fui arrastada, mas consegui me manter firme. Fui indo cada vez mais para o fundo, as ondas estavam bem fortes. Respirei fundo e mergulhei. Tentei ir o mais fundo que pude. Em um certo momento, aspirei com toda a força a àgua salgada para dentro dos meus pulmões. Foi doloroso no começo, meu corpo pesou e eu fui parar no fundo. Senti a areia em minhas costas, era tudo tão suave. Vi o brilho da superficie lá encima. Comecei a cantar. Já estava quase acabando, porque o sono já estava vindo. Eu balançava com a corrente submersa. Já não sentia mais quase nada do meu corpo. Já fazia parte do mar.